Parou
e ateve-se ao cansaço que sentia. E não é que já não estivesse parada. Estava,
embora movesse os dedos deslizando para cima o “feed de notícias”. Sempre mais
do mesmo: esportivos, zoeiros, animaizinhos fofinhos, religiosos e seus contrários
(uma minoria de ateus chatos e um tanto maior de cristãos chatos), famílias
felizes, indivíduos revoltados, meteorologistas (aqueles que quase morrem de
frio ou de calor, dependendo da estação do ano), musicas ruins, um pouco de
musica boa, filósofos da moda em vídeo, dicas de coisas práticas e fáceis de
fazer, militantes de política...
Os
piores para ela eram os últimos! Sempre haveria um espertão para dizer que “em
tudo fazemos política”. Sendo assim, ela preferia fazer sua própria política da
poesia e da boa música! Sem que fosse trancada em qualquer sistema de
ideologia. A única concessão que fazia à palavra “ideologia” era à voz de
Cazuza.
E
foi justamente a sua paixão pelo Rock Nacional que a tinha deixado do jeito que
a encontramos ali no primeiro parágrafo: cansada. Quando parou de olhar aquele “museu
de grandes novidades” nas notícias da rede social, lembrou do “Dia Mundial do
Rock”. Para ela todo dia era de rock. Mas com a hashtag bombando, achou que,
ainda mais que os outros, tinha direito de publicar uma música também.
Ouvia Legião Urbana,
terminando o disco “Dois”. Procurou no YouTube um vídeo com a música “índios” e
publicou na rede social. Não demorou para aparecer alguém comentando: “graças
ao mimimi esquerdista mortadela de gente como esse Renato Russo , blá-blá-blá
de índio, de gays, difamação dos militares e outras baboseiras que o país virou
essa merda!”. Teve vontade de estar diante da pessoa para dizer bem alto um
palavrão! Depois se acalmou e pensou que se estivesse diante da pessoa,
perguntaria: "você prestou atenção no solo de violão desta versão acústica da
música?" No fim não quis estar diante daquela pessoa. Quem faz um comentário desses
não teria ouvidos para qualquer argumento contrário. Como não queria discussão,
e como existem tantas outras canções de Rock no mundo, simplesmente apagou
aquela e escolheu outra.
Enquanto pensava em
algo mais tranquilo que Legião Urbana para postar, digitou quase que
naturalmente “Nando Reis”. Apareceu uma música recente, que ainda não conhecia:
“Só Posso Dizer”. Achou a música linda. Quem poderia reclamar daquela canção de
amor? Postou. Três pessoas logo curtiram! Ufa... Sem brigas agora. Foi então
apareceu um comentário: “Saudades daquele Nando dos Titãs,
engajado, tocando baixo, fazendo rock de verdade... Na situação que vive o país
o cara fica ainda fazendo essas musiquinhas de amor. Em que planeta ele vive?”.
Nem quis perder tempo pensando no comentário. Apagou a postagem.
Começou a ficar enjoada!
Só queria celebrar o dia do rock com um rock. Mas sem discutir com ninguém. Lembrou
do Oficina G3, Rock pesado e com letras sobre Deus. Quem poderia ir ali falar
mal de Deus? Escolheu uma música das antigas e postou. Veio então o primeiro
comentário: “Oficina G3 é uma benção. Se aproxima perigosamente de coisas do
demônio para resgatar os mais perdidos no mundo. São verdadeiros anjos,
principalmente para esses roqueiros drogados que andam por aí.”. Ficou ofendida
com a associação do Rock com “coisas do demônio”, mas, pelo menos, dessa vez
não havia crítica à musica e à banda. Foi aí que alguém respondeu ao primeiro
comentário: “vocês fanáticos são responsáveis pela morte de milhares de pessoas
que sofrem com sua pregação de ódio. Se dizem membros da religião do amor, mas
vivem atacando todos os que não seguem suas regras idiotias”. O que? Guerra Santa
seria demais para ela. Apagou.
Sentia-se inútil. Seria
possível apenas fazer uma homenagem ao seu ritmo musical preferido sem que
alguém se inflamasse em fúria? Seu sentimento de inutilidade levou inevitavelmente
a procurar a música “inútil” do Ultraje a Rigor. Escreveu na descrição antes de
postar: “Espero que não me apareça nenhum inútil reclamando dessa música.
#DiaMundialDoRock”. Nessa veio o
comentário mais rápido: “Inútil define bem esse reacionário coxinha, sempre
militando contra os pobres. O discursinho babaca dele ajudou a colocar os
corruptos que aí estão no poder.”. Chega! O que a opinião do cara tinha a ver
com essa música? Talvez o problema seja o Rock Nacional. Pessoas muito inflamadas
com a política local.
Decidiu então fazer uma
última tentativa. Agora apelaria para The Beatles. Procurou “Don't Let Me Down”,
tocada em cima de um prédio. Escreveu apenas a hashtag e postou. Muitas pessoas
curtiram. Alguns comentaram coisas do tipo “Um clássico – viva o rock”. Parecia
ter acertado a mão desta vez. Foi preparar um chá enquanto ouvia o disco Gita,
do Raul Seixas. Riu ao ouvir "As aventuras de Raul Seixas na Cidade de
Thor" e lembrar de suas aventuras na "cidade digital".
Depois de um tempo ouviu
o som de um novo comentário: "Não foi por acaso que esse Lennon Morreu. Deus
o castigou por ter dito que essa bandinha era maior que Jesus. Teve o fim que
mereceu, ele e essa bandinha”. Raul cantava ao fundo "Viva a Sociedade
Alternativa". Escolheu então ignorar. Viveu aquele dia do Rock ouvindo
rock.
Agora, dias depois, passando por mais do mesmo na "cidade digital"
lembrou daquele fatídico Dia Mundial do Rock. Como já sabemos, sentiu-se
cansada. Cansada que estava, levantou-se e decidiu descer as escadas e se
atirar na rua. E caminhando a pé encontrou um vizinho que disse "que
governo safado, já aumentaram o preço da gasolina!". Fez uma careta para
contenta-lo, acenou despedindo-se e seguiu... A pé, sem se importar com a
gasolina. Sorrindo, sem se importar com o frio que fazia...