quarta-feira, 25 de julho de 2018

Sou Escritor, Tia Mônica! Obrigado!


       Minha mãe já vinha me preparando há séculos para um desafio inadiável, irremediável e inegociável! Se uso hoje a palavra “séculos”, é porque aos seis anos incompletos, o tempo era difícil de ser valorado. Pois bem, completei seis anos na segunda metade de dezembro (como já me é habitual desde o mais profundo que alcanço em minha memória) e, logo que a escola primária voltou a funcionar, em janeiro, minha mãe foi lá me matricular no pré. Todos concordavam que era necessário fazer o pré para chegar no primeiro ano já alfabetizado. Consigo até imaginar a secretária dizendo a ela: “então, mãe, eu sei que seu filho acabou de completar seis anos, mas ele fará sete ainda este ano. Ele não pode ser matriculado no pré, terá que ir direto ao primeiro ano.”
        E lá fui, com uma mochilinha onde havia caderno e lápis, mais uma lancheira, com um copo de suco (daqueles artificiais “de dez centavos”, que rendia dois litros com dez gramas de “pó radioativo”) e um sanduíche. Eu que nunca (NUNCA MESMO) atendi aos apelos argumentativos de que “homem não chora”, chorei litros de lágrimas quando vi minha mãe indo embora sem me levar consigo. Ao me sentar, precisava de um espaço para debruçar a cabeça e tentar controlar o choro, mas a mochila e a lancheira atrapalhavam. Então notei um buraco embaixo da mesinha, e ali coloquei minhas coisas para poder chorar em paz. Choro controlado, apresentações feitas, fui percebendo que nem era tão ruim assim aquele lugar. Mas quando bateu o sinal do recreio, um piá passou correndo, esbarrou na minha mesa e meu copo de suco radioativo se espalhou pelo chão de sala. FOI HORRÍVEL! Mas a “tia” me acalmou, disse para eu não me preocupar. Quem era aquela “tia” tão legal? Sei que há quem não goste do termo “tia”, mas, para crianças que vivem ouvindo para não falar com estranhos, parece um recurso interessante o uso de “tia” nas escolas primárias.
        Antes de ingressar na escola, o mundo se desenrolava em grandes histórias com meu irmão e minhas primas gêmeas. A Vó Mafalda oferecia o figurino para as nossas histórias. Ela própria nos enchia a imaginação contando histórias do sítio onde cresceu, entre outras que leu ou ouviu. Eu e meu irmão tínhamos uma “máquina do tempo”, que era ativada pela cordinha da descarga do banheiro (foi mal mãe, se a conta de água vinha cara, acho que era culpa dessas nossas aventuras quando tu saias para trabalhar). Quando eu e o Emerson nos desentendíamos, e ele deixava de ser o irmão mais novo legal de sempre, só havia uma explicação. Aquele vilão que tomara o seu lugar não era ele, era o Maicon (sei lá de onde tirei esse nome, mas era o que usava para aquele “vilão imaginário”). Enfim... Havia literatura na minha fase pré-escrita. Teatro, contos, crônicas... Tudo no universo da imaginação, fosse compartilhado ou individual.
        Voltando a tia Mônica. A simpatia por ela do primeiro dia se desfez quando, logo na primeira semana, ela me incluiu na “sala de reforço no contra-turno”. Tinha que frequentar a escola de manhã para aprender a fazer continhas e, principalmente, aprender a escrever. Primeiro acharam que o problema era eu só conseguir escrever com a “mão errada”. Mas não havia o que fazer. Se a mão esquerda só desenhava letras terríveis, a mão direita mal conseguia segurar o lápis. Mas, séculos depois (talvez dois meses), a Tia Mônica suspendeu a determinação de que eu frequentasse o reforço no contra-turno. Finalmente conseguia escrever de uma maneira minimamente inteligível.
        Mas as letras que todos nós sabíamos fazer era “letra de forma”, que chamamos hoje de “caixa alta”. Então, em um dia de recreio, tomando meu suco radioativo e tentando me esquivar da tia da merenda que queria me forçar a comer polenta, ouvi uma conversa da piazada da minha sala: “olha lá a Keila, do pré! Sabia que ela sabe fazer letra de mão?”. Não lembro nada da fisionomia da Keila, mas posso garantir que ela foi a primeira guria que me impressionou nesta vida. Ela era do pré e sabia fazer letra "de mão" (cursiva)!!! A Keila era a inspiração para aquele semestre. Eu deveria aprimorar a minha escrita. Talvez, um dia, poderia escrever algo para ela, “para Keila”, “de Jeferson”. Mas, que bobagem... Eu não era o aluno da turma do reforço? Era melhor esquecer a ideia.
        Então, antes das férias de inverno, em uma fresca tarde londrinense, a professora resolveu nos levar em uma praça perto da escola. A atividade era simples: observar tudo ao redor e anotar coisas que era possível observar ali, da praça. Anotei. Depois ela fez algumas brincadeiras lúdicas e voltamos para a escola. Então veio a tarefa para casa: escrever uma história usando todas as palavras que anotamos na praça. Escrevi e entreguei na aula seguinte. A tia Mônica então anunciou que premiaria a melhor redação da sala. Claro que isso não era coisa para mim, o aluno canhoteiro de letra feia que, até bem pouco tempo, frequentava a sala de reforço. Nem pensei nisso. No dia seguinte ela chegou com uma espécie de diploma impresso. “O melhor escritor da sala”. Ganhei. Sinceramente, embora eu desfrute de uma memória boa, não tenho a menor ideia do que foi que escrevi. Mas lembro que meu pai foi contratado para pintar a escola nas férias, e um dia ele chegou em casa dizendo que a professora tinha pedido para ficar com minha redação. Pediu autorização para publicá-la em algum lugar. Vieram outras redações e muitos outros elogios. Foi inesquecível uma reunião de pais em que a tia Mônica chamou minha mãe de lado e disse:  “ele é um gênio! Um gênio...”.
        Desde então, já fui “devorador de livros” da biblioteca do Colégio Champagnat (como me chamava a bibliotecária – que se viu obrigada a liberar empréstimo de “livros do ensino médio” quando, ainda no sétimo ano, já tinha lido todos os da série vaga-lume disponíveis ali). Então me tornei “pacoteiro do viscardi”, para ajudar minha mãe em casa (e poder tomar tubaína uma vez ou outra no lugar do “suco radioativo”). Depois aprendi a pedalar e virei ciclista. Aprendi a tocar violão e contrabaixo elétrico e virei músico. Me apaixonei, tropecei nas palavras faladas, mas arranquei suspiros da musa escrevendo cartas, poemas e músicas. Fui ator e roteirista em peça de teatro. Fiz um curso técnico para ser corretor de imóveis, mas acabei preferindo virar professor... São tantos os adjetivos... Raramente me prendo a algum deles, já que prefiro viver como quem constrói o próprio enredo, ou, como diria Nietzsche, uma “vida como obra de arte”.
        Recentemente, ao me desiludir com um projeto coletivo de música, no qual investi tempo e dinheiro, mas que acabou prosseguindo sem mim, resolvi me aproximar da música de uma maneira mais íntima, individual. Procurei então um ser humano que é referencia para mim como artista (no sentido amplo e trágico da palavra) – o mestre Tonho Costa. Além de ter tocado com meu pai logo no início de sua carreira, ele é ator (vi ele há pouco na TV em uma propaganda de curso de inglês), escreve canções com letras que são poemas de primeiríssima qualidade, faz trilha sonora de peças de teatro e toca o violão mais bem tocado dessa terra de chão vermelho.
        Pois foi em um dia de lições com o mestre que ele me perguntou, seco e sem brecha para abstrações: “O que você é?”! A pergunta me assustou. Refleti sobre tudo o que já fui e lembrei: quando me chamaram para atuar, persuadi a todos que eu também deveria roteirizar a peça. Quando me chamaram para tocar, propus que eu deveria escrever as letras. Quando me formei professor, especialista e mestre, o fiz escrevendo. Quando o mundo transbordou dentro de mim em paixões, dores e amores, traduzi tudo em poemas nos cadernos e blogs da vida. Não sei o que sou, é verdade. Mas naquela questão direta do mestre, era preciso “escolher uma camisa para jogar”. E, como quem joga futebol precisa definir se marca ou finaliza melhor; se defende com as mãos ou arma melhor a jogada; estava eu ali diante de uma escolha. A minha resposta seria muito mais para mim que para ele. Nortearia minhas estratégias para além daquela lição. Então eu disse ao mestre devagar e certo (como várias vezes já o fiz pegando a camisa nove e dizendo “só sei fazer gol, nada mais”): EU SOU ESCRITOR!
Ontem recebi um e-mail vindo do outro lado do Atlântico. Como dica da minha amiga Cinthia (que está a perambular pelos mares do outro lado do mundo), submeti um texto e dois poemas meus para o projeto de uma editora portuguesa que lançará uma antologia sobre o amor. O regulamento previa a inscrição de um texto ou até três poemas. Subverti as regras e enviei um texto, mais dois poemas. Expliquei no e-mail que os poemas estavam ali para o caso de o texto não ser selecionado. Era a minha “segunda chance”. Os portugueses não vão aceitar textos de um brasileiro que subverteu as regras, vão? Aceitaram os três!
        É verdade que meu nome já aparece em publicações de cunho acadêmico. Mas para mim isso é como fazer gol de pênalti. Vale, claro que vale. Mas não mostra toda a construção criativa da jogada. Depois de anos escrevendo poemas, contos, crônicas e filosofias em blogs, terei minha estreia impressa! E, que ironia, uma estreia internacional!
        Ainda tenho romance (s) incompleto (s) em gestação, que, segundo o Mestre Tonho, poderá me trazer satisfação semelhante à dele ao lançar seu primeiro disco “Universo Quintal”. Minha estreia como romancista ainda é projeto. Mas, com o aceite da editora europeia para publicar (ao lado de minha amiga Cinthia), neste “Dia Nacional do Escritor”, quero agradecer a Tia Mônica que, desde que anotei as minhas primeiras palavras dentro de um enredo, percebeu que: Eu sou escritor! Obrigado, Tia Mônica, onde quer que esteja. (foi professora da Escola Estadual Arthur Thomas, em Londrina, na vila Brasil, no início dos anos 1990).

#DiaNacionalDoEscritor



sexta-feira, 20 de julho de 2018

Amizade Estelar (Nietzsche)


Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois navios que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho; podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos – e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol. Parecendo haver chegado ao seu destino e ter tido um só destino. Mas, então, a todo-poderosa força de nossa missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos, e talvez nunca mais nos vejamos de novo – ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos reconhecermos: os diferentes mares e sóis nos modificaram! Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é da lei acima de nós: justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos – elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade. – E assim crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos de ser inimigos na Terra. (Friedrich Nietzsche - Aforismo 279, A Gaia Ciência)

Foto: Cinthia Gonçales Da Silva





sábado, 7 de julho de 2018

Doze Horas Piscantes


         Acordei com o corpo todo molhado de suor, assustado e muito ofegante. Embora sentisse a umidade intensa na pele e a respiração acelerada, não conseguia ainda enxergar direito. Não sabia onde estava, não sabia quando, nem quanto tinha dormido. No fundo, não sabia nem o que eu era! Aos poucos meus olhos conseguiram se fixar num ponto de onde uma luz piscava. A luz era fraca, e possuía um formato estranho, que apagava e ascendia. Seria um código? Era! Eram números:
12:00
“Doze horas”, pensei... O que quer dizer isso? Fui então tomando consciência do tempo, das horas e dos relógios. Não sei quanto tempo levei nessa reflexão, mas estou certo que se passou bem mais que um minuto. Talvez dez, quinze, meia hora... Mesmo assim o relógio insistia em piscar na meia-noite! Ou seria meio-dia?
Ergui então a cabeça até uma janela pouco acima de mim, do meu lado esquerdo. Não era nem noite e nem dia! A luz de fora era fraca, uma penumbra daquelas que se vê pouco antes do Sol inaugurar os dias, ou pouco depois do final da tarde quando a estrela escapa de nossas vistas. Então não podia ser nem meio-dia, nem meia-noite! Poderia ser seis horas! Da manhã ou da tarde? Não sabia.
Começaram então a me ocorrer pensamentos ancestrais! Há quantos séculos haviam animais que, vez ou outra, sentiam o que eu sentia naquele momento? O suor no corpo, o despertar assustado, a respiração ofegante... Isso parecia ser algo tão antigo quanto o Sol e a Lua. Seriam o Sol e a Lua mesmo tão antigos? Ou seriam fenômenos recentes? Não sabia!
Comecei a suspeitar que aquela luz piscando na minha frente não era algo ancestral! Luzes ancestrais, fótons de luz, átomos de Hélio se intensificavam aos poucos do lado de fora da janela. Era, portanto uma manhã! Quantas manhãs já haviam brilhado no mundo daquela maneira? Quantas vezes estas manhãs foram percebidas por animais de corpos suados, ofegantes e assustados? Não sabia!
Mas aquela luz... Doze horas... Talvez já se passara mais de uma hora desde que notei a presença daquela luz piscante! Mesmo assim, o tempo não passava ali! Piscava eternamente e ininterruptamente “12:00”! Vídeo Cassete!!! Sim, aquela era a luz de uma das maravilhas recentes! O vídeo cassete! Como era o mundo antes do vídeo cassete? Para ver uma história se desenrolar dramaticamente, era preciso ter uma boa roupa, uma boa companhia, dinheiro para se locomover e pagar pelo acesso às cadeiras de onde se via o palco! Não, eu sou um solitário, um desafortunado. Não tenho condições para ir ao teatro. Cinema é uma maravilha moderna, mas também é muito caro! Graças ao crediário que consegui fazer lá na loja do centro, pude trazer para casa essa maravilha! Agora era só pegar a bicicleta, ir na locadora e escolher filmes para ver. Mas não podiam ser mais que dois. Ficaria muito caro. Lançamentos então, nem pensar... Não tinha problema. No catálogo de filmes chamados já de “antigos”, eu não tinha visto nenhum! Gastaria uma vida vendo-os! O dono da locadora me deixava levar dois filmes do catálogo pelo preço de um, desde que eu os pegasse à noite e devolvesse no outro dia antes das nove. Se atrasasse, ele cobraria os dois! Foi isso o que aconteceu!!!
Cheguei em casa e gozei do privilégio de viver nessa época tão bem aparelhada! Nenhum dos reis gregos, romanos, germânicos, britânicos, luso-brasileiros... Nenhum ser humano de até pouquíssimo tempo atrás pode desfrutar dessa maravilha! Eu sim! Era mais privilegiado que qualquer privilegiado nobre de outrora... Cheguei em casa e assisti uma história incrível! Era sobre um arqueólogo que vivia muitas aventuras em busca de relíquias históricas! Indiana Jones! Que filme!!! Depois, assisti a um em que um jovem viajava para o passado com ajuda de um carro construído por um cientista! Ele foi lá pras antigas, pra época do rock primitivo! O filme é empolgante! Mas não consigo lembrar do desfecho... O que acontecia mesmo? O Sol já começava a arder nas minhas pernas deitadas no colchão atirado no chão da sala. “12:00”, piscava o relógio na minha frente! Espera aí... Que horas são, de verdade??? Preciso devolver os filmes! Mas preciso rebobinar a fita também! Era outra cláusula do seu Germano, dono da locadora! Entregar no prazo, com as fitas rebobinadas, ou pagar mais dois dinheiros! Eu não tinha mais dois dinheiros...
Liguei o vídeo cassete e coloquei a fita para voltar! Onde está meu relógio? Achei! O que? Doze horas? O relógio tinha parado! Meio-dia ou meia-noite? Não sei!!!! Já disse que NÃO SEI!!! Liguei um velho walk man de onde ouvia fitas de rock e jogos de futebol. Mudei da posição “tape” para a posição “radio”. Tirei da posição “AM” e coloquei na “FM”. Coloquei naquela rádio que anuncia as horas ao final de cada música. Estava com sorte, era o final da música e a fita estava quase toda rebobinada. Restava saber se estava com as horas também ao meu favor. O locutor diz: “no ponto do relógio, 7:57”. Ufa! Tomaria café tranquilamente ainda antes de sair para devolver as fitas. Durante a semana batalharia para conseguir mais dois dinheiros! Teria que pegar novamente o “De volta para o futuro”. Pegaria também a continuação, e, dessa vez, não dormiria antes do fim! Ah, como é bom viver hoje e ser um privilegiado! Preciso desfrutar de toda esta inovação, nunca antes vista ou imaginada!