segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Linhas Profundas

(a Alexandre Casonatto)

 

“Profissional de Saúde”

Para mim tem rosto, nome

E longas linhas de história

Ao meu lado

 

Dia desses ele abriu uma janela

Por onde enxerguei a linha

A tão falada “linha-de-frente”

 

Me sobraram então silêncios

Amplificados pela imagem

A imagem da linha...

 

Linha funda no rosto

E a tentação de sacralizar,

Dotar de heroísmo,

Agradecer, aplaudir...

 

Mas isso é tão irrisório

Quando aquela linha funda

Traduz pelos olhos: “Medo”.

 

Humanizar a linha

Tirar dali a imagem de peão

Em tabuleiro de xadrez.

Não vou romantizar!

 

Ali há um pai,

Um filho

Um irmão,

Um aniversariante...

 

Que tem medo.

Não tem superpoderes

E sente o peso.

Do traje e da circunstância.

 

Não posso sacralizá-lo.

Divinizar aquela linha

Seria banalizar a humanidade.

 

Quisera agora apenas ser poema

Ou um único verso de alívio.

Uma inspiração compassiva,

Que, tendo também linhas profundas,

Sofra junto...

 

Me atenho àquele olhar exausto

Ainda cheio de vida e vontade

Que em meio à tanta falta de ar,

 

Em meio a tantas mortes ao redor,

Por intermináveis dias de privação,

Resiste!

 

A este olhar

Este poema torto

Se dirige.

A este olhar de vida

 

Que hoje, mais uma vez

Completa e reinicia

Uma nova jornada

Ao redor do sol.

 


Não Essencial

 (a Daniel Vitor)

 

Nunca escrevi um verso essencial

Pois essa minha natureza de poeta

É inútil, a nada serve e é maioral

Sem servir, há liberdade, nunca meta

 

Interromper um soneto rimado na primeira estrofe

Já́ não é novidade em meus poemas experimentais

Deixar o verso livre e prosear, tal qual Caeiro, é sublime

E é inútil, insisto, e não essencial...

 

Mas por que escrever um poema que não serve para nada?

Serve em si mesmo, por isso é soberano e livre

Traduz a poesia das horas que nunca me abandona,

Me devolve ao vômito de versos de que abdiquei para...

 

Por que mesmo abdiquei de meus poemas?

Não sei...

Para que dedicar os instantes finais de um domingo,

Em meio a uma pandemia, para traduzir-me em poema?

 

Estou aqui tecendo esses versos soltos por causa de um amigo

Que me lembrou que sou poeta, como um enfermo dos olhos

Que teima em ver o mundo/poesia sabendo-se inútil e não essencial,

Tendo nessas premissas a justificativa de todo o seu universo

 

Este poema inútil e não essencial se encerra

Tornando à rima como volta a primavera

Olhando versos meus em outra terra

Novos agora após longa espera.