sexta-feira, 2 de abril de 2021

Vidas Raras (parte 2) – O menino

Quando ele surgiu em minha vida, a primeira reação foi de medo das reações. A pouca idade e o espírito roqueiro/zoeiro me renderam inúmeros tapinhas nas costas com frases do tipo: “agora tem que levar a vida à sério, hein?”. Outros afirmavam que tudo mudaria, que não era fácil ser pai, entre outros.

Decidi não me afetar e agir com naturalidade. Não parei de encarar a vida com bom humor e nem de ouvir/tocar rock. Luiz Miguel foi bombardeado desde a gestação com muito Rock...

Como única criança do rolê, ele ia pra ensaios de banda, UEL (onde eu e sua mãe estudavamos), ensaios de teatros da Paixão de Cristo, onde muitas vezes era eu no papel de Cristo. Mas ele gostava mais dos soldados romanos. Sozinho no quintal, sempre via-o crucificando o Cristo com um capacete de panetone na cabeça e um chicote improvisado de barbantes. Depois passou a imitar o Anitelli, do Teatro Mágico.

Nunca precisei mudar! Ao contrário, ganhei um parceirinho de rock, teatro e vida. Esse combo de alegrias foi até 2011, quando veio a irmã que já nasceu e encarando uma cirurgia. No final do ano veio pra ele uma gripe forte que não cedeu em uma semana. Vômito com sangue corpo ardendo em febre no meu colo, na fila de espera para o internamento na UTI. A morte do meu filho parecia inevitável. Apesar dos teatros, nunca pensei que seria capaz um dia de querer, como Jesus, doar a minha vida por alguém. E ali, naquele terrível corredor de hospital, eu faria qualquer coisa para assumir a posição moribunda em que ele se encontrava.

Mas não havia nada a fazer além de confiar no trabalho dos profissionais de saúde que cuidavam dele. Era a segunda vez em nove meses em que eu estava na situação de ver um filho na UTI.

A ciência venceu a morte mais uma vez. Eu não troquei de lugar com ele, mas valeu a pena confiar na medicina. Claro que aquilo marcou. O LM nunca mais foi o mesmo. Eu nunca mais fui o mesmo. Apesar dos pesares, resistimos!

É triste ver hoje, diante da pandemia, tanta gente sofrendo por alguém em uma UTI. Às vezes até morrendo sem leito disponível. Deixo meu abraço a todos os que tiveram alguém que perdeu essa batalha. Aos que lutam, resta confiar na ciência. 



quinta-feira, 1 de abril de 2021

Vidas Raras #01 - Duas UTI's e um trauma

Há exatamente uma década eu lia Nietzsche em um leito no hospital. Aguardava o momento de olhar pela prmeria vez para a minha filha. Ela chegava bem no dia do quinto aniversário do irmão.

Um erro de digitação em um documento havia me tirado de forma cruel a possibilidade de dar aulas como professor substituto. Fazia mestrado na UEL e concorria à uma bolsa da Capes. Por isso lia Nietzsche. Eu era pai de dois filhos. E desempregado. Mas o filósofo me dizia "amor fati". E assim seria, pensava...

A menina nasceu e logo foi possível vê-la na encubadora. Mas ela não sairia de lá naquele dia. Nasceu com atresia de esofago e foi transferida para o Hospital infantil, onde deveria fazer uma cirurgia como única chance de sobreviver. Deu certo. Mas foram duas semanas de UTI. Nesse meio tempo veio a minha bolsa e, graças ao SUS e seus profissionais, o LM também pôde receber a irmã em casa.

Amor fati!

A morte próxima de minha filha motivou-me. Aquele outono de 2011 seria o mais intenso de minha vida. E a curva apontava para cima. Não sei que tipo de energia me tomou, mas o inverno de 2011 fez eu sentir-me um Zaratustra chegando ao grande meio-dia da existência. Prosas, futebol, poesia, rock and roll... Era do mestrado para o doutorado. Dali para a docência e carreira acadêmica.

Mas no dia do meu aniversário, ao final da primavera, o @lmcabran vomitava sangue. Ardendo em febre no meu colo, precisou ser transferido do hospital infantil (onde tudo começou) para uma UTI no Evangélico.

Há dez anos refaço mentalmente outono, inverno e primavera. Há dez anos tento escapar àquele ciclo trágico. Dor-prazer-dor...

Li outro dia que a psicologia chama esse ciclo mental de retorno aos eventos de "trauma".

"(...) Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e sequência’  [...]" – Nietzsche, A Gaia Ciência, §341

 

Um retorno à Londrina depois de consulta e exames em Curitiba - 2019

segunda-feira, 8 de março de 2021

Basta de Palavras

Estou atirada no chão do banheiro com os dois cotovelos apoiados na fria borda do vaso sanitário. Minhas mãos seguram o aparelho que brilha diante dos meus olhos com o bloco de notas aberto... Ele está chutando a porta enquanto eu escrevo sei lá porque...

Estou ilhada aqui dentro, pois ele desligou o modem de internet e sabe que a operadora bloqueou meu sinal há meses por falta de créditos. Foi uma escolha difícil. Entre o bloco de notas e a navalha de barbear dele. Mas cá estou eu sem saber se essa escolha foi a correta.

Ele parou de gritar e chutar a porta. O que estará fazendo? Quer saber, não me importo! Não mais. No fundo até torço para que ele consiga arrebentar essa porta e acabar logo com isso.

Estou intrigada com a paz que me invadiu agora, justo agora, no momento mais perigoso dessa minha vidinha insossa. Sei lá... Parece que fui libertada de pesadas correntes que era obrigada a arrastar por aí. Quando foi que aceitei as obrigações que tive até agora há pouco? Sinceramente, não sei.

Lembro que de ouvir o padre dizendo que ele era o cabeça da relação. Lembro de ouvir uma psicóloga dizendo em um programa de TV que a gente tem que aprender a ceder para fazer um relacionamento funcionar. E assim o fiz. Aos poucos e constantemente. Parei de treinar com as amigas da turma do atletismo da escola. Ele não gostava. Atrapalhava o fim de semana em família. Tudo bem. Família é mais importante mesmo, não é?

O que será que ocorreu com o pessoal do jornal da faculdade? Diziam que eu escrevia com primor! Contos, crônicas, poemas... Muitas vidas imaginadas em um universo vasto e paralelo que eu construía. Mas ele não gostava, pois não se via ali ao me ler. Uma vez ele insistiu em saber quem era aquele cara charmoso do meu conto. Quis saber onde ele morava e não acreditou quando falei do meu mundo paralelo. Bom... Melhor ceder. Por que escrever se já temos tantos gênios da literatura? Deixar de escrever era um favor que eu fazia ao mundo. Era um favor que eu fazia a minha família, não é mesmo? Não é, gente???

Meu deus, quem estou querendo enganar? Escrevo sozinha olhando meu rosto de merda refletido na água da privada. Mas há algo novo nesse rosto para além dos reflexos! Para além de uma vida de merda. Há um brilho intenso ofuscando o refle...

Ah, MEU DEUS!

Ele está voltando e gritando: “SE NÂO SAIR DAÍ EM DEZ MINUTOS EU VOU TE MATAR, DESGRAÇADA”.

Tive vontade de rir! Ganhei dez minutos de felicidade e não posso perder tempo. Levantei do chão e agora escrevo em pé. Vou conferir no espelho da pia para ver o que há de tão diferente em mim. São os olhos... Brilham como nunca antes! Meus cabelos cortados ainda estão no chão e essa, de olhos brilhantes e cabelos raspados é linda e livre! Sou agora como Sansão às avessas! Ter usado a maquininha de barba dele para raspar meus cabelos roubou de mim as minhas fraquezas. Apesar de ele quase ter arrancado meu braço antes de eu correr de volta pra cá, me sinto forte. Tenho ainda oito minutos para aproveitar essa sensação de uma força descomunal. Essa força agora se traduz em palavras. Claro que seria mais cômodo desejar uma força capaz de quebrar as paredes ao meu redor e colocar o meu amado pra correr.

Eu escrevi amado?

Sim... Acho que ainda o amo, apesar de ele nunca ter gostado daquilo que sou por baixo da casca de cabelo, maquiagem e vestidos. Mas ele gostava do que eu parecia ser, e sempre foi um preço justo para ficar perto de quem se ama...

Por que eu fiz isso? Por que não consigo me arrepender? Talvez, se eu me arrependesse sinceramente, ele poderia me perdoar. Mas perdoar de que? Hoje eu acordei cansada do cadáver ambulante que carrego há anos. Hoje cansei. Quis olhar pro meu antigo rosto de menina-moleque que costumava adorar esportes de rua e roupas largas. Mas...

O que eu faço agora? Essa aí do espelho me sorri com um sorriso iluminado. Mas eu, aqui nessa inútil tradução da vida que não sei se será lida por alguém além de mim, busco desesperadamente por um sentimento de culpa que me devolva aos braços do meu amado.

Não me culpo. E essa é minha maior culpa agora!

Quantos minutos me resta? Pouco importa! Na pequena janela do banheiro vejo uma sombra tapando os raios de luz do final da tarde. No vão das sombras busco e encontro frestas de sol. A linda luz do dia que aos poucos se esvai reflete em alegria no olhar que vejo de relance no espelho enquanto escrevo.

Parei de escrever nos últimos 30 segundos! O vidro do banheiro se estraçalhou depois de um estrondo. A marca do tiro parou no alto da porta. Ele gritou: “ABRE A PORTA AGORA! O PRÓXIMO EU NÃO ERRO, MALDITA!”

Calculei mentalmente o tempo que ele levou da janela até a porta. Recomeçou com os pontapés. Está gritando, mas não vou abrir. Dois tiros. Ficaram na madeira maciça da porta. Quanto eu preciso correr quando ver a sombra dele na janela? Será que tenho chances de correr e mergulhar para dentro de meu universo paralelo?

Adeus navalhas! Hoje meus pulsos ficarão intactos, pois tenho uma corrida a fazer. Adeus bloco de notas! Vou te enrolar entre os papeis higiênicos e imaginar que, no meio da merda, algum vira-latas vai encontrar este registro dos meus mais belos momentos e leva-los pela boca ao mais sensível entre todos os leitores.

A sombra surgiu na janela!

Basta de palavras!

Hora de correr...


*Este conto tem como plano de fundo a música "Basta", de Tonho Costa, disponível no Spotfy e YouTube.




sábado, 3 de outubro de 2020

A Semana mais quente da História (Londrina*)

 

Levantei-me tomado de uma inspiração matinal e pus-me a afrontar a poderosa estrela que garante toda a vida nesse pedaço de rocha esférica que chamamos de “Terra”:

— O que seria de ti, imponente estrela, se não fossem aqueles que iluminas? Tens tanto poder mas não podes nem mesmo nomear-se, pois és mudo! Eu, na minha pequenez, chamo-lhe Sol e, alimentando-me de sua energia, sou capaz de pensar e de falar! Mas tu não pensas e não falas. Não tens consciência, criatividade, voz...

Eu passaria o dia jogando na cara do astro o quando ele perde para mim em razão, mas fui surpreendido quando uma voz aguda e aquecida invadiu a minha mente. E a estrela simplesmente repetia-se em uma mesma frase:

— QUEIMEM, DESGRAÇADOS!

 

Bom dia, Sol!

* Londrina viveu o dia mais quente já registrado oficialmente. Segundo o Simepar foi registrado 39,5ºC no meio da tarde de ontem, sexta-feira 02/10/2020. Quarta feira tivemos 39,3ºC. O recorde histórico anterior a essa semana havia sido registrado em novembro de 1985, 39,2ºC. 

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Linhas Profundas

(a Alexandre Casonatto)

 

“Profissional de Saúde”

Para mim tem rosto, nome

E longas linhas de história

Ao meu lado

 

Dia desses ele abriu uma janela

Por onde enxerguei a linha

A tão falada “linha-de-frente”

 

Me sobraram então silêncios

Amplificados pela imagem

A imagem da linha...

 

Linha funda no rosto

E a tentação de sacralizar,

Dotar de heroísmo,

Agradecer, aplaudir...

 

Mas isso é tão irrisório

Quando aquela linha funda

Traduz pelos olhos: “Medo”.

 

Humanizar a linha

Tirar dali a imagem de peão

Em tabuleiro de xadrez.

Não vou romantizar!

 

Ali há um pai,

Um filho

Um irmão,

Um aniversariante...

 

Que tem medo.

Não tem superpoderes

E sente o peso.

Do traje e da circunstância.

 

Não posso sacralizá-lo.

Divinizar aquela linha

Seria banalizar a humanidade.

 

Quisera agora apenas ser poema

Ou um único verso de alívio.

Uma inspiração compassiva,

Que, tendo também linhas profundas,

Sofra junto...

 

Me atenho àquele olhar exausto

Ainda cheio de vida e vontade

Que em meio à tanta falta de ar,

 

Em meio a tantas mortes ao redor,

Por intermináveis dias de privação,

Resiste!

 

A este olhar

Este poema torto

Se dirige.

A este olhar de vida

 

Que hoje, mais uma vez

Completa e reinicia

Uma nova jornada

Ao redor do sol.

 


Não Essencial

 (a Daniel Vitor)

 

Nunca escrevi um verso essencial

Pois essa minha natureza de poeta

É inútil, a nada serve e é maioral

Sem servir, há liberdade, nunca meta

 

Interromper um soneto rimado na primeira estrofe

Já́ não é novidade em meus poemas experimentais

Deixar o verso livre e prosear, tal qual Caeiro, é sublime

E é inútil, insisto, e não essencial...

 

Mas por que escrever um poema que não serve para nada?

Serve em si mesmo, por isso é soberano e livre

Traduz a poesia das horas que nunca me abandona,

Me devolve ao vômito de versos de que abdiquei para...

 

Por que mesmo abdiquei de meus poemas?

Não sei...

Para que dedicar os instantes finais de um domingo,

Em meio a uma pandemia, para traduzir-me em poema?

 

Estou aqui tecendo esses versos soltos por causa de um amigo

Que me lembrou que sou poeta, como um enfermo dos olhos

Que teima em ver o mundo/poesia sabendo-se inútil e não essencial,

Tendo nessas premissas a justificativa de todo o seu universo

 

Este poema inútil e não essencial se encerra

Tornando à rima como volta a primavera

Olhando versos meus em outra terra

Novos agora após longa espera.

domingo, 31 de maio de 2020

Atalho para a Rua de Cima

            Se você está lendo este conto em uma rede social, talvez não saiba que ele é parte de uma coletânea inspirada no álbum “As Meninas da Rua de Cima”, do meu amigo e mestre Tonho Costa. Talvez você tenha em mãos um leitor de livros digitais, ou uma cópia impressa do livro que este projeto pretende tornar-se um dia. Nesse segundo caso, este conto estrategicamente está no meio do livro, e você já entendeu o espírito da coisa. Mas essa metade do caminho é também um marco inicial de inspiração, por isso narro em primeira pessoa, e não há nenhum problema em partir daqui!
            Estou na primeira década do século XXI, sou um estudante de cursinho pré-vestibular e estou deitado no chão do quarto que divido com meu irmão lendo “O Mundo de Sofia” e pensando seriamente em estudar a graduação em Filosofia. Se bem que Letras seria legal também. Em meio aos pensamentos perco o foco do que estava lendo e fecho o livro. “O Romance da História da Filosofia” é o subtítulo. A palavra “romance” me remete ao curso de Letras. Mas entre a primeira e a última palavra há um caminho do meio “História”. Seria muito bobo dizer que escolhi minha profissão através da capa de um livro norueguês infanto-juvenil? Pois foi...
            Saí de casa empolgado, já tentando olhar o mundo com olhos de historiador. Qual é a construção mais antiga da Vila da Fraternidade? Saio da minha rua, a Santa Apolônia e subo a Santa Madalena. A minha direita o posto de saúde, que, ouvi dizer, fora a primeira casa de alvenaria do bairro. A minha esquerda vejo a Igreja Católica, que embora tenha um prédio mais recente, ainda mantem em pé a primeira capelinha do bairro, logo na esquina com a Santa Cecília. Perdido em meus pensamentos sou surpreendido pela menina mais linda do bairro!
— Você é inteligente, né? Deve saber tudo de Química! Eu e ela (apresenta a amiga) vamos prestar Biologia ano que vem e precisamos de ajuda para estudar!
            Olho para ela e a amiga e sinto que cada segundo passa como se fosse uma eternidade. Mas não é uma eternidade que me ajuda a formular as melhores palavras a serem ditas. Se pudesse falar o que o coração queria, sem qualquer filtro moral, diria simplesmente “Se você me namora, posso entender até de Física Quântica...”. Então o medo do ridículo supera a paralisia e digo:
— Nem sou tão inteligente assim. Mas entendo um pouco de química sim! Se quiserem, podemos marcar um dia para estudarmos.
            Elas gritam como um time de voleibol comemorando um ponto, me agradecem e se afastam. Como pude ser tão dissimulado? Embora tenha uma facilidade natural para as ciências humanas, Química não me entra na cabeça! Menti! Descaradamente, menti! Agora eu deveria parar de ler meu romance tão interessante para estudar uma maldita tabela periódica...
Valia a pena?
Ah, se valia... Bastava pensar naquele par de olhos verdes, aquele sorriso largo e aquela voz profunda e hipnotizante. E dentro da minha consciência uma meta afim de alcançar a um desejo: “se você me namora, eu me adestro em seu assunto...”. Fui a biblioteca pública e estudei química por dois dias seguidos. À noite, no cursinho, esperava mais pela professora de Química do que pelo professor de História. No terceiro dia, quando achei que já tinha conhecimento para desenrolar pelo menos uma aula, fui até a rua de cima, a Santa Cecília, onde ela morava. Gritei no portão e a irmã mais nova dela saiu e falou:
— Asãmnhãunhizuammgusimank
— QUE???
— ASÃMNHÃUNHIZUAMMGUSIMANK!!!
            Eu não entendia o que a menininha falava, e como nenhum adulto apareceu para falar comigo, segui o único gesto que entendi, quando a menina apontou o dedo para o lado direito. Caminhei pela Santa Cecília olhando dentro de cada quintal para ver se encontrava a minha pretensa aluna de Química. Funcionou! Lá estava ela, atrás de um balcão, sentada em uma mesa com um computador ligado à sua frente.
— Oiiiii!!!
            Ela me recebeu com tanto entusiasmo que não pude conter nenhum dos movimentos possíveis que meu rosto pode dar ao sorrir. Ela nem me deixou falar e perguntou:
— Como você me achou aqui?
— A sua irmã me falou!
            Eu não podia dizer que a achei por pura sorte, já que a irmã dela falava num dialeto indecifrável. Havia muita coisa a perder se eu, por acaso, crio um mal estar criticando a comunicação da irmãzinha dela. Então fui direto ao ponto:
— E então, quando vamos estudar Química?
— Eu bem que precisava mesmo, mas arrumei esse trabalho de secretária substituta por um mês, então vai ter que ser depois, tudo bem?
— Claro!!!
            Quase não consegui esconder o alívio por me libertar da urgência em aprender Química! Ela passava horas ali sozinha, já que a secretária titular estava em férias e, por isso tinha deixado todo o trabalho mais difícil adiado ou adiantado. Aí passei a acompanha-la em seu ofício em boa parte do tempo naquele mês. Por fim, ela desistiu de estudar Biologia e nem prestou o vestibular naquele ano. Eu passei em História e, no ano seguinte, ela foi estudar no mesmo Centro Universitário que o meu, no curso de Letras. As idas ao escritório na rua de cima, depois de um mês viraram idas à casa dela, na mesma rua de cima.
            Tudo em minha casa tinha ficado mais intenso. Os livros que eu lia eram empolgantes. O clima londrinense, o melhor do mundo naquele outono. O céu tinha um azul profundo e todos os passarinhos, mesmo a mais trivial das pombas, eram verdes. Quando algum amigo, daqueles que ficavam horas ali em casa, me chamava no portão, eu nunca podia fingir que não estava, pois minha mãe dizia que era pecado mentir. Eu precisava escapar de meus amigos sem mentir. Então notei que a casa aos fundos da minha era a de uma tia-avó, que morava na rua de cima. Construí uma escada com madeiras velhas e escorei-a no muro alto dos fundos. Do lado de lá havia um barranco e uma pequena plantação de bananeiras. Pulei, ajeitei ali alguns tijolos para facilitar uma eventual volta no escuro e atravessei o quintal da tia idosa até alcançar o portão que me colocava quase na frente do meu alvo, a casa mais importante! O lar da Menina da Rua de Cima.
            Então, depois de pouco tempo, ela me namorou, e aquele atalho me foi útil por dois anos. Claro que com o tempo meus amigos descobriram a tática, e passaram a vir me chamar aqui.
Como?
Eu disse aqui?
Sim!
Dois anos depois me mudei para a Rua de Cima. Os quartos que eram dela e da irmã, agora são dos nossos dois filhos. O quarto que era o de seus pais, agora é o nosso. Hoje comemoramos o aniversário dela, e as Ruas de Cima da vida me parecem ser bem mais especiais que o Monte Olimpo, da mitologia grega. As Ruas de Cima existem, com suas meninas e seus encantos. Com gente gentil e gente grosseira. E apesar de todos os problemas que existem no mundo real, beber dessa dose outrora ideal e agora palpável de “Rua de Cima” vale a vida.

*Este conto tem como plano de fundo a música "Se Você me Namora", de Tonho Costa, disponível no Spotfy, Apple Music e YouTube.


sábado, 22 de fevereiro de 2020

O Estranho Cigarro Fino de Malena

         Certamente você já viu Malena por aí! E não é que ela goste muito de aparecer, mas, não obstante seu recato, é impossível que ela passe despercebida. A sua beleza tem um brilho tão intenso, que, por vezes, quase me esqueço que não estou olhando para a tela de uma televisão de altíssima qualidade em dia de transmissão do tapete vermelho do Óscar.  É tanta luz emanando daquela pessoa, que quase me esqueço que ela é uma senhora do lar a caminho da feira para comprar verduras frescas a serem usadas no almoço.
Não se engane, Malena não cozinha, embora tenha habilidade neste ofício. Seu marido mantém uma empregada doméstica, responsável pelos cuidados de sua enorme casa e das refeições da família. Mas Malena, a gentil Malena, faz questão de escolher pessoalmente os ingredientes para o almoço. E ela leva muito à sério, quase eleva ao nível de sacralidade a arte de escolher verduras. É ali que se manifesta todo o esplendor daquela mulher que, para justificar seu papel no mundo, tem que ser sempre, bela, do lar e recatada.
Malena acena para os conhecidos na feira, conversa com o seu Kinjon Humos sobre a qualidade das folhas disponíveis naquele dia. Para na banca do pastel, onde suas amigas Lourdes e Augusta já estão lhe esperando para botar a tradicional conversa da feira em dia:
— Menina, você viu o Fernandinho, filho da Katia?
— Que dó, não é? Apareceu todo pintado de tatuagem na igreja no domingo!
— Se a Katia não botar um limite nesse rapaz, logo ele estará fumando droga por aí...
Então as três concordam:
— “Deus o livre...”.
Como agradecimento por sua atenção até aqui, vou lhe poupar dos outros assuntos, tão desinteressantes quanto as tatuagens do filho da Katia. Espero que não tenhas herdado desta narrativa antipatia de nenhuma espécie pela minha musa, Malena. Embora essa conversa que estou omitindo seja, de fato, extremamente maçante, gostaria de colar aqui com precisão cirúrgica a personagem poética que é Malena em cada um dos seus movimentos. Apesar de, às vezes, ficar falando mal dos outros, ela preserva essa luz radiante. E eu, pobre mortal de luz opaca, contentei-me por anos com o benefício de vislumbrar esta luz. Mas então tornei-me adulto no dia em que ela virou toda sua luz na minha direção e percebeu-se observada! Sorriu, piscou os olhos e fez um biquinho como quem me mandasse um beijo. Esfreguei os olhos, olhei ao redor para ver se não era o marido dela ou outra pessoa perto de mim quem recebia aqueles gestos sublimes. Não havia ninguém ao meu redor. Mas quando olhei em sua direção, lá estava ela com a Lourdes e a Augusta colocando a fofoca em dia. 
        Foi um delírio. Sim, eu tinha certeza que era um delírio. Enquanto tratava de me acertar com as minhas alucinações, uma voz atrás de mim falou:
— Tem fogo, Kaderbeck?
Ela sabia meu nome! ELA SABE MEU NOME!!! Não, meu nome não é “Kaderbeck”. Nem Malena se chama Malena, são nomes fictícios, embora as pessoas por trás dos nomes, garanto serem reais. Mas preciso proteger Malena. O que vem a seguir é um segredo que, estou convencido, não pretendo colar na límpida imagem por traz desta beldade que, aqui, chamo de Malena. Ela então prosseguiu:
— Você fuma, não é? Sempre vejo seu pai fumando aí na frente, você deve fumar também, não é? E aí, tem fogo?
— Claro!!! Preciso pegar ali em casa.
Eu morava na rua da feira. E era da calçada ao lado de casa que passei a observar aquela distinta moradora da rua de cima. Ela “Morava na esquina, ao lado do portão de entrada do parque da quadra” onde eu jogava bola com meus amigos. Mas eu gostava mesmo é de observa-la descer a rua para a feira do meu quintal. O seu Kimjon Humos tinha um acordo com meu pai para estacionar a sua Kombi de verduras bem ali, em cima da nossa calçada. Naquele dia, as suas caixas de madeira empilhadas me roubaram toda a visão da feira. Mas agora Malena me pedia fogo e, sem ser convidada, me seguiu por traz da Kombi e das caixas até a minha casa. Meus pais trabalhavam, então, peguei o isqueiro do meu pai e, fingindo que era meu, enfiei seu maço de cigarro paraguaio no bolso.
— Aqui o fogo! Soltou algum fio da roupa, dona Malena? Precisa cauterizar o tecido?
— Dona Malena, piá? Me poupe! Preciso do seu fogo para me acender!
Ela pronunciou isso de maneira tão sensual, que voltei a questionar se estava delirando. A coroa dos meus sonhos estava ali, na sala de minha casa, sozinha comigo.
— O fogo é pra me acender esse cigarro!
Tirou da bolsa um pedaço de papel alumínio, de onde desembrulhou um tipo de cigarro bem mais fino que os do meu pai. Então ela me deu e falou:
— Acende! Dá o primeiro trago!
Nem de cigarro eu gostava. Sempre fugi da fumaça fedorenta que meu pai produz. Mas não podia negar. Eu suportaria todo o odor do mundo em homenagem ao brilho daquela mulher. É claro que eu ascendi o seu estranho cigarro e dei o primeiro trago. Tossi um pouco. Ela riu. Para a minha enorme surpresa, aquela fumaça não era tão desagradável quanto a do meu pai! Seria algum tipo de cigarro importado de um lugar muito distante do Paraguai? Então ela pegou o cigarro e, na cena mais improvável que poderia imaginar, tragou profundamente, com estilo e habilidade de quem faz isso há muito tempo. Tive uma vontade incontrolável de rir. O corpo de Malena parecia agora envolto por uma onda, como uma miragem. Sua camisa social branca com um laço de fita preto parecia se desabotoar. Ri compulsivamente ao ver a saia longa marrom de Malena ir ao chão. Diante dos meus olhos um corpo escultural completamente nu se materializou. Mas, naquela altura, eu já tinha certeza que era delírio. Até as paredes da sala oscilavam. E eu ria de uma alegria que não sabia de onde vinha. Estaria ficando doente ou louco? Malena pediu para eu segurar seu cigarro e puxou minha camiseta. Aproveitei para dar outro trago. Então ela desabotoou minha calça e eu, já certo de que se tratava de um sonho, deixei o sonho conduzir-se por si só a partir de então...
Poupo-os agora dos detalhes deste momento delirante. Só para equilibrar a história, já que eu tinha lhe poupado de um trecho extremamente chato, agora deixo por conta de vossa imaginação o ápice desse enredo.
Naquele dia não realizei nenhuma das tarefas diárias delegadas por meus pais. Quando meu pai chegou, me viu dormindo nu no sofá com seu isqueiro e maço de cigarros no chão. Enquanto ele tentava em vão me interrogar e esbravejava por ter visto aquela “visão do capeta”, palavras dele, eu pensava se minha mente era tão criativa a ponto de ter construído todo esse cenário sozinha. Conclui que sim, que tinha vivido uma manhã de loucura, por conta da devoção de toda uma adolescência pela figura de Malena.
Na outra semana reiniciei a observação da feira a espera de Malena. Ela nem me viu, como sempre. Encontrou-se com Lourdes e Augusta, como sempre. Despediu-se delas e, quando parecia se dirigir para sua casa, na rua de cima, virou-se para o meu lado, caminhou decidida e sensual até parar diante de mim e perguntar:
— E aí? Ainda tem fogo?


*Este conto é uma livre interpretação minha da música "Malena", de Tonho Costa, disponível no Spotfy, Apple Music e YouTube.


quarta-feira, 25 de julho de 2018

Sou Escritor, Tia Mônica! Obrigado!


       Minha mãe já vinha me preparando há séculos para um desafio inadiável, irremediável e inegociável! Se uso hoje a palavra “séculos”, é porque aos seis anos incompletos, o tempo era difícil de ser valorado. Pois bem, completei seis anos na segunda metade de dezembro (como já me é habitual desde o mais profundo que alcanço em minha memória) e, logo que a escola primária voltou a funcionar, em janeiro, minha mãe foi lá me matricular no pré. Todos concordavam que era necessário fazer o pré para chegar no primeiro ano já alfabetizado. Consigo até imaginar a secretária dizendo a ela: “então, mãe, eu sei que seu filho acabou de completar seis anos, mas ele fará sete ainda este ano. Ele não pode ser matriculado no pré, terá que ir direto ao primeiro ano.”
        E lá fui, com uma mochilinha onde havia caderno e lápis, mais uma lancheira, com um copo de suco (daqueles artificiais “de dez centavos”, que rendia dois litros com dez gramas de “pó radioativo”) e um sanduíche. Eu que nunca (NUNCA MESMO) atendi aos apelos argumentativos de que “homem não chora”, chorei litros de lágrimas quando vi minha mãe indo embora sem me levar consigo. Ao me sentar, precisava de um espaço para debruçar a cabeça e tentar controlar o choro, mas a mochila e a lancheira atrapalhavam. Então notei um buraco embaixo da mesinha, e ali coloquei minhas coisas para poder chorar em paz. Choro controlado, apresentações feitas, fui percebendo que nem era tão ruim assim aquele lugar. Mas quando bateu o sinal do recreio, um piá passou correndo, esbarrou na minha mesa e meu copo de suco radioativo se espalhou pelo chão de sala. FOI HORRÍVEL! Mas a “tia” me acalmou, disse para eu não me preocupar. Quem era aquela “tia” tão legal? Sei que há quem não goste do termo “tia”, mas, para crianças que vivem ouvindo para não falar com estranhos, parece um recurso interessante o uso de “tia” nas escolas primárias.
        Antes de ingressar na escola, o mundo se desenrolava em grandes histórias com meu irmão e minhas primas gêmeas. A Vó Mafalda oferecia o figurino para as nossas histórias. Ela própria nos enchia a imaginação contando histórias do sítio onde cresceu, entre outras que leu ou ouviu. Eu e meu irmão tínhamos uma “máquina do tempo”, que era ativada pela cordinha da descarga do banheiro (foi mal mãe, se a conta de água vinha cara, acho que era culpa dessas nossas aventuras quando tu saias para trabalhar). Quando eu e o Emerson nos desentendíamos, e ele deixava de ser o irmão mais novo legal de sempre, só havia uma explicação. Aquele vilão que tomara o seu lugar não era ele, era o Maicon (sei lá de onde tirei esse nome, mas era o que usava para aquele “vilão imaginário”). Enfim... Havia literatura na minha fase pré-escrita. Teatro, contos, crônicas... Tudo no universo da imaginação, fosse compartilhado ou individual.
        Voltando a tia Mônica. A simpatia por ela do primeiro dia se desfez quando, logo na primeira semana, ela me incluiu na “sala de reforço no contra-turno”. Tinha que frequentar a escola de manhã para aprender a fazer continhas e, principalmente, aprender a escrever. Primeiro acharam que o problema era eu só conseguir escrever com a “mão errada”. Mas não havia o que fazer. Se a mão esquerda só desenhava letras terríveis, a mão direita mal conseguia segurar o lápis. Mas, séculos depois (talvez dois meses), a Tia Mônica suspendeu a determinação de que eu frequentasse o reforço no contra-turno. Finalmente conseguia escrever de uma maneira minimamente inteligível.
        Mas as letras que todos nós sabíamos fazer era “letra de forma”, que chamamos hoje de “caixa alta”. Então, em um dia de recreio, tomando meu suco radioativo e tentando me esquivar da tia da merenda que queria me forçar a comer polenta, ouvi uma conversa da piazada da minha sala: “olha lá a Keila, do pré! Sabia que ela sabe fazer letra de mão?”. Não lembro nada da fisionomia da Keila, mas posso garantir que ela foi a primeira guria que me impressionou nesta vida. Ela era do pré e sabia fazer letra "de mão" (cursiva)!!! A Keila era a inspiração para aquele semestre. Eu deveria aprimorar a minha escrita. Talvez, um dia, poderia escrever algo para ela, “para Keila”, “de Jeferson”. Mas, que bobagem... Eu não era o aluno da turma do reforço? Era melhor esquecer a ideia.
        Então, antes das férias de inverno, em uma fresca tarde londrinense, a professora resolveu nos levar em uma praça perto da escola. A atividade era simples: observar tudo ao redor e anotar coisas que era possível observar ali, da praça. Anotei. Depois ela fez algumas brincadeiras lúdicas e voltamos para a escola. Então veio a tarefa para casa: escrever uma história usando todas as palavras que anotamos na praça. Escrevi e entreguei na aula seguinte. A tia Mônica então anunciou que premiaria a melhor redação da sala. Claro que isso não era coisa para mim, o aluno canhoteiro de letra feia que, até bem pouco tempo, frequentava a sala de reforço. Nem pensei nisso. No dia seguinte ela chegou com uma espécie de diploma impresso. “O melhor escritor da sala”. Ganhei. Sinceramente, embora eu desfrute de uma memória boa, não tenho a menor ideia do que foi que escrevi. Mas lembro que meu pai foi contratado para pintar a escola nas férias, e um dia ele chegou em casa dizendo que a professora tinha pedido para ficar com minha redação. Pediu autorização para publicá-la em algum lugar. Vieram outras redações e muitos outros elogios. Foi inesquecível uma reunião de pais em que a tia Mônica chamou minha mãe de lado e disse:  “ele é um gênio! Um gênio...”.
        Desde então, já fui “devorador de livros” da biblioteca do Colégio Champagnat (como me chamava a bibliotecária – que se viu obrigada a liberar empréstimo de “livros do ensino médio” quando, ainda no sétimo ano, já tinha lido todos os da série vaga-lume disponíveis ali). Então me tornei “pacoteiro do viscardi”, para ajudar minha mãe em casa (e poder tomar tubaína uma vez ou outra no lugar do “suco radioativo”). Depois aprendi a pedalar e virei ciclista. Aprendi a tocar violão e contrabaixo elétrico e virei músico. Me apaixonei, tropecei nas palavras faladas, mas arranquei suspiros da musa escrevendo cartas, poemas e músicas. Fui ator e roteirista em peça de teatro. Fiz um curso técnico para ser corretor de imóveis, mas acabei preferindo virar professor... São tantos os adjetivos... Raramente me prendo a algum deles, já que prefiro viver como quem constrói o próprio enredo, ou, como diria Nietzsche, uma “vida como obra de arte”.
        Recentemente, ao me desiludir com um projeto coletivo de música, no qual investi tempo e dinheiro, mas que acabou prosseguindo sem mim, resolvi me aproximar da música de uma maneira mais íntima, individual. Procurei então um ser humano que é referencia para mim como artista (no sentido amplo e trágico da palavra) – o mestre Tonho Costa. Além de ter tocado com meu pai logo no início de sua carreira, ele é ator (vi ele há pouco na TV em uma propaganda de curso de inglês), escreve canções com letras que são poemas de primeiríssima qualidade, faz trilha sonora de peças de teatro e toca o violão mais bem tocado dessa terra de chão vermelho.
        Pois foi em um dia de lições com o mestre que ele me perguntou, seco e sem brecha para abstrações: “O que você é?”! A pergunta me assustou. Refleti sobre tudo o que já fui e lembrei: quando me chamaram para atuar, persuadi a todos que eu também deveria roteirizar a peça. Quando me chamaram para tocar, propus que eu deveria escrever as letras. Quando me formei professor, especialista e mestre, o fiz escrevendo. Quando o mundo transbordou dentro de mim em paixões, dores e amores, traduzi tudo em poemas nos cadernos e blogs da vida. Não sei o que sou, é verdade. Mas naquela questão direta do mestre, era preciso “escolher uma camisa para jogar”. E, como quem joga futebol precisa definir se marca ou finaliza melhor; se defende com as mãos ou arma melhor a jogada; estava eu ali diante de uma escolha. A minha resposta seria muito mais para mim que para ele. Nortearia minhas estratégias para além daquela lição. Então eu disse ao mestre devagar e certo (como várias vezes já o fiz pegando a camisa nove e dizendo “só sei fazer gol, nada mais”): EU SOU ESCRITOR!
Ontem recebi um e-mail vindo do outro lado do Atlântico. Como dica da minha amiga Cinthia (que está a perambular pelos mares do outro lado do mundo), submeti um texto e dois poemas meus para o projeto de uma editora portuguesa que lançará uma antologia sobre o amor. O regulamento previa a inscrição de um texto ou até três poemas. Subverti as regras e enviei um texto, mais dois poemas. Expliquei no e-mail que os poemas estavam ali para o caso de o texto não ser selecionado. Era a minha “segunda chance”. Os portugueses não vão aceitar textos de um brasileiro que subverteu as regras, vão? Aceitaram os três!
        É verdade que meu nome já aparece em publicações de cunho acadêmico. Mas para mim isso é como fazer gol de pênalti. Vale, claro que vale. Mas não mostra toda a construção criativa da jogada. Depois de anos escrevendo poemas, contos, crônicas e filosofias em blogs, terei minha estreia impressa! E, que ironia, uma estreia internacional!
        Ainda tenho romance (s) incompleto (s) em gestação, que, segundo o Mestre Tonho, poderá me trazer satisfação semelhante à dele ao lançar seu primeiro disco “Universo Quintal”. Minha estreia como romancista ainda é projeto. Mas, com o aceite da editora europeia para publicar (ao lado de minha amiga Cinthia), neste “Dia Nacional do Escritor”, quero agradecer a Tia Mônica que, desde que anotei as minhas primeiras palavras dentro de um enredo, percebeu que: Eu sou escritor! Obrigado, Tia Mônica, onde quer que esteja. (foi professora da Escola Estadual Arthur Thomas, em Londrina, na vila Brasil, no início dos anos 1990).

#DiaNacionalDoEscritor



sexta-feira, 20 de julho de 2018

Amizade Estelar (Nietzsche)


Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois navios que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho; podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos – e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol. Parecendo haver chegado ao seu destino e ter tido um só destino. Mas, então, a todo-poderosa força de nossa missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos, e talvez nunca mais nos vejamos de novo – ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos reconhecermos: os diferentes mares e sóis nos modificaram! Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é da lei acima de nós: justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos – elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade. – E assim crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos de ser inimigos na Terra. (Friedrich Nietzsche - Aforismo 279, A Gaia Ciência)

Foto: Cinthia Gonçales Da Silva