domingo, 31 de maio de 2020

Atalho para a Rua de Cima

            Se você está lendo este conto em uma rede social, talvez não saiba que ele é parte de uma coletânea inspirada no álbum “As Meninas da Rua de Cima”, do meu amigo e mestre Tonho Costa. Talvez você tenha em mãos um leitor de livros digitais, ou uma cópia impressa do livro que este projeto pretende tornar-se um dia. Nesse segundo caso, este conto estrategicamente está no meio do livro, e você já entendeu o espírito da coisa. Mas essa metade do caminho é também um marco inicial de inspiração, por isso narro em primeira pessoa, e não há nenhum problema em partir daqui!
            Estou na primeira década do século XXI, sou um estudante de cursinho pré-vestibular e estou deitado no chão do quarto que divido com meu irmão lendo “O Mundo de Sofia” e pensando seriamente em estudar a graduação em Filosofia. Se bem que Letras seria legal também. Em meio aos pensamentos perco o foco do que estava lendo e fecho o livro. “O Romance da História da Filosofia” é o subtítulo. A palavra “romance” me remete ao curso de Letras. Mas entre a primeira e a última palavra há um caminho do meio “História”. Seria muito bobo dizer que escolhi minha profissão através da capa de um livro norueguês infanto-juvenil? Pois foi...
            Saí de casa empolgado, já tentando olhar o mundo com olhos de historiador. Qual é a construção mais antiga da Vila da Fraternidade? Saio da minha rua, a Santa Apolônia e subo a Santa Madalena. A minha direita o posto de saúde, que, ouvi dizer, fora a primeira casa de alvenaria do bairro. A minha esquerda vejo a Igreja Católica, que embora tenha um prédio mais recente, ainda mantem em pé a primeira capelinha do bairro, logo na esquina com a Santa Cecília. Perdido em meus pensamentos sou surpreendido pela menina mais linda do bairro!
— Você é inteligente, né? Deve saber tudo de Química! Eu e ela (apresenta a amiga) vamos prestar Biologia ano que vem e precisamos de ajuda para estudar!
            Olho para ela e a amiga e sinto que cada segundo passa como se fosse uma eternidade. Mas não é uma eternidade que me ajuda a formular as melhores palavras a serem ditas. Se pudesse falar o que o coração queria, sem qualquer filtro moral, diria simplesmente “Se você me namora, posso entender até de Física Quântica...”. Então o medo do ridículo supera a paralisia e digo:
— Nem sou tão inteligente assim. Mas entendo um pouco de química sim! Se quiserem, podemos marcar um dia para estudarmos.
            Elas gritam como um time de voleibol comemorando um ponto, me agradecem e se afastam. Como pude ser tão dissimulado? Embora tenha uma facilidade natural para as ciências humanas, Química não me entra na cabeça! Menti! Descaradamente, menti! Agora eu deveria parar de ler meu romance tão interessante para estudar uma maldita tabela periódica...
Valia a pena?
Ah, se valia... Bastava pensar naquele par de olhos verdes, aquele sorriso largo e aquela voz profunda e hipnotizante. E dentro da minha consciência uma meta afim de alcançar a um desejo: “se você me namora, eu me adestro em seu assunto...”. Fui a biblioteca pública e estudei química por dois dias seguidos. À noite, no cursinho, esperava mais pela professora de Química do que pelo professor de História. No terceiro dia, quando achei que já tinha conhecimento para desenrolar pelo menos uma aula, fui até a rua de cima, a Santa Cecília, onde ela morava. Gritei no portão e a irmã mais nova dela saiu e falou:
— Asãmnhãunhizuammgusimank
— QUE???
— ASÃMNHÃUNHIZUAMMGUSIMANK!!!
            Eu não entendia o que a menininha falava, e como nenhum adulto apareceu para falar comigo, segui o único gesto que entendi, quando a menina apontou o dedo para o lado direito. Caminhei pela Santa Cecília olhando dentro de cada quintal para ver se encontrava a minha pretensa aluna de Química. Funcionou! Lá estava ela, atrás de um balcão, sentada em uma mesa com um computador ligado à sua frente.
— Oiiiii!!!
            Ela me recebeu com tanto entusiasmo que não pude conter nenhum dos movimentos possíveis que meu rosto pode dar ao sorrir. Ela nem me deixou falar e perguntou:
— Como você me achou aqui?
— A sua irmã me falou!
            Eu não podia dizer que a achei por pura sorte, já que a irmã dela falava num dialeto indecifrável. Havia muita coisa a perder se eu, por acaso, crio um mal estar criticando a comunicação da irmãzinha dela. Então fui direto ao ponto:
— E então, quando vamos estudar Química?
— Eu bem que precisava mesmo, mas arrumei esse trabalho de secretária substituta por um mês, então vai ter que ser depois, tudo bem?
— Claro!!!
            Quase não consegui esconder o alívio por me libertar da urgência em aprender Química! Ela passava horas ali sozinha, já que a secretária titular estava em férias e, por isso tinha deixado todo o trabalho mais difícil adiado ou adiantado. Aí passei a acompanha-la em seu ofício em boa parte do tempo naquele mês. Por fim, ela desistiu de estudar Biologia e nem prestou o vestibular naquele ano. Eu passei em História e, no ano seguinte, ela foi estudar no mesmo Centro Universitário que o meu, no curso de Letras. As idas ao escritório na rua de cima, depois de um mês viraram idas à casa dela, na mesma rua de cima.
            Tudo em minha casa tinha ficado mais intenso. Os livros que eu lia eram empolgantes. O clima londrinense, o melhor do mundo naquele outono. O céu tinha um azul profundo e todos os passarinhos, mesmo a mais trivial das pombas, eram verdes. Quando algum amigo, daqueles que ficavam horas ali em casa, me chamava no portão, eu nunca podia fingir que não estava, pois minha mãe dizia que era pecado mentir. Eu precisava escapar de meus amigos sem mentir. Então notei que a casa aos fundos da minha era a de uma tia-avó, que morava na rua de cima. Construí uma escada com madeiras velhas e escorei-a no muro alto dos fundos. Do lado de lá havia um barranco e uma pequena plantação de bananeiras. Pulei, ajeitei ali alguns tijolos para facilitar uma eventual volta no escuro e atravessei o quintal da tia idosa até alcançar o portão que me colocava quase na frente do meu alvo, a casa mais importante! O lar da Menina da Rua de Cima.
            Então, depois de pouco tempo, ela me namorou, e aquele atalho me foi útil por dois anos. Claro que com o tempo meus amigos descobriram a tática, e passaram a vir me chamar aqui.
Como?
Eu disse aqui?
Sim!
Dois anos depois me mudei para a Rua de Cima. Os quartos que eram dela e da irmã, agora são dos nossos dois filhos. O quarto que era o de seus pais, agora é o nosso. Hoje comemoramos o aniversário dela, e as Ruas de Cima da vida me parecem ser bem mais especiais que o Monte Olimpo, da mitologia grega. As Ruas de Cima existem, com suas meninas e seus encantos. Com gente gentil e gente grosseira. E apesar de todos os problemas que existem no mundo real, beber dessa dose outrora ideal e agora palpável de “Rua de Cima” vale a vida.

*Este conto tem como plano de fundo a música "Se Você me Namora", de Tonho Costa, disponível no Spotfy, Apple Music e YouTube.