Fui
convocado para uma entrevista. Estão querendo que eu me assuma:
—
Vou direto ao ponto: Tu tá dando muita pinta!
—
Pinta de que?
—
Todo mundo está percebendo...
—
Todo mundo quem? Percebendo o que? Dá para ser mais específico?
—
Essa sua mania, digamos... Diferente...
—
Ah, mania? Isso não é mania! Sou isso! Sem isso, não sou!
—
Tá... Então tu precisa se assumir!
—
Assumir o que? Para quem? Sou assim, não devo satisfação a ninguém!
—
Deve a mim! E as pessoas precisam saber. Pelo menos pra mim tu tem que se
assumir! Tu é, mesmo... Digo... Não é só, digamos... Curiosidade?
—
Veja só... Quem é você pra ficar cheio de censuras comigo? Na hora da
necessidade você usou e abusou de mim para conseguir o que queria! Tornou-se
professor com minha ajuda! Na graduação, especialização, mestrado... Sempre
estive lá para que você se tornasse quem é hoje!
—
Tudo bem! Tive sua ajuda sim! Mas nunca disse que eu era... Tu sabe...
—
Ah, não? E aquela história de “Estação Raul”? Eu estava lá! Depois veio o
“Trágica Mente Falando”. E o que você disse que era mesmo? “Blogueiro”? Faça-me
o favor... Isso sem falar no “Clã Curinga”, “Los três espideros”, e o pior de
todos: “LEC N’ Roll”. Veio com desculpinha de futebol pra usar de todas as
minhas habilidades, e agora quer me negar?
—
Não é isso... Não estou te negando! Mas é que eu preciso saber! Tu é parte de
mim...
—
Uma parte que você vive omitindo, não é? Agora quer que me assuma por que?
—
Não é que eu esconda nada... Só acho que não precisamos expor nossa intimidade
assim. Ninguém tem nada a ver com o que se passa dentro de nós.
—
Está percebendo? Você é incoerente! Sempre quis me esconder, agora quer que eu
grite para o mundo que existo e sou isso mesmo?
—
Sim... As coisas mudaram um pouco. As pessoas tem me cobrado! Já não sobraram
muitos amigos dispostos a conviver com nossa personalidade forte, os problemas
de saúde das crianças e outras coisas... Mas os que persistem próximos às vezes
perguntam por que ando tão sumido. E isso é culpa tua! Preciso que assuma de
uma vez por todas! Só assim posso, ao menos, ter algo a dizer, embora talvez
não sirva de justificativa...
—
Mas você nunca se importou muito com o que as outras pessoas pensam! Por isso
não entendo essa mudança de postura!
—
Acho que estou cansado! As pessoas ao redor parecem cada vez mais apegadas em
estereótipos bem delimitados. Não quero continuar vivendo desta aparência de
indivíduo completo! Somos muitos! E mesmo estes muitos que somos, vivem se
alterando, discutindo, brigando: Como estamos fazendo agora!
—
Acho que te entendo! Nunca achei que fosse necessário me assumir, mas já que
você insiste... Mas os outros estão de acordo?
—
Que outros?
—
Todos os outros! Quantos somos?
—
Sei lá... Tem eu, sua consciência, tem o professor e suas subdivisões: é um no
ensino fundamental e outro no médio. Um ensinando História e outro ensinando
Filosofia ou Ensino Religioso. Mas tem também o ciclista, o consumidor, o
morador, o músico, o ator, o pai... Sei lá... Somos muitos! Não quero ficar
rotulando tudo o que somos...
—
Então porque quer que justo eu me assuma?
—
Tu é a parte de mim que me acalma. Gostaria de dedicar mais tempo a ti. Sei que
isso não me levará a nada! Tu me é inútil, do ponto de vista financeiro... E é
por isso que te amo tanto! Acho que, no fundo, só podemos amar aquilo que nos é
inútil, pois quando algo é útil, nós usamos por convenção. Só amamos aquilo
que, de certa maneira, podemos chamar de inútil...
—
(...) Aaaahhhh, não me faça chorar assim... Isso é tão... Lindo...
—
Não quis te fazer chorar! Te amo!!!
—
Isso é tão comovente que vou me assumir agora, e quantas vezes forem
necessárias!
—
Obrigado! Isso é muito importante pra mim!
—
Eu... Sou... É...
—
Diga!!!
—
Eu sou... ESCRITOR!!!
—
Muito obrigado! Com você ao meu lado posso ser tudo o que cabe dentro dessa
nossa cabeça fervilhante! E podemos interagir com infinitos personagens que
criamos todos os dias! Na era dos YouTubers, assumir-se escritor é remar contra
a maré, para, quem sabe, chegar no canal de acesso ao rio das ideias abertas!
Lá seguiremos nosso fluxo! Jamais nos encerre em um rótulo! Cuide de todos nós,
nobre escritor que vive em mim... Nenhuma de nossas partes quer imortalidade,
ou qualquer um destes clichês que justificam “missionários das letras”!
Queremos apenas gozar de cada instante de vida! Sigamos com nossa obra! Ela é
aquilo que transforma nossa fida em obra de arte!
—
Teu desejo é uma ordem, mestre! Você também: não se encerre em definições. Não
abra mão da poesia musical em suas aulas como professor. Não deixe o ciclista
em nós desanimar dos cuidados com nosso corpo e, não seja um tirano. Permita
que possamos, vez ou outra sentar diante do sofá para ver uma série ou um
filme. Vamos dedicar o maior tempo possível a rir com as crianças de quem somos
responsáveis! Mas também não deixe de ler um livro trivial e engraçado de
literatura barata, de ir aos jogos do Londrina e torcer, mesmo que não haja
nada e nenhum blog para escrever! E o mais importante: que ninguém imponha
qualquer identidade conclusiva a nós mesmos. Não somos uma multidão. Mas, tal
qual as pessoas de Fernando Pessoa, existimos simultaneamente em um mesmo corpo
e uma mesma mente! E como diria uma das pessoas do mestre/poeta citado, que
ninguém nos venha com conclusões, pois “a única conclusão é morrer...”.