Estou atirada no chão
do banheiro com os dois cotovelos apoiados na fria borda do vaso sanitário. Minhas
mãos seguram o aparelho que brilha diante dos meus olhos com o bloco de notas aberto...
Ele está chutando a porta enquanto eu escrevo sei lá porque...
Estou ilhada aqui
dentro, pois ele desligou o modem de internet e sabe que a operadora bloqueou
meu sinal há meses por falta de créditos. Foi uma escolha difícil. Entre o bloco
de notas e a navalha de barbear dele. Mas cá estou eu sem saber se essa escolha foi a
correta.
Ele parou de gritar e
chutar a porta. O que estará fazendo? Quer saber, não me importo! Não mais. No fundo
até torço para que ele consiga arrebentar essa porta e acabar logo com isso.
Estou intrigada com a
paz que me invadiu agora, justo agora, no momento mais perigoso dessa minha
vidinha insossa. Sei lá... Parece que fui libertada de pesadas correntes que
era obrigada a arrastar por aí. Quando foi que aceitei as obrigações que tive
até agora há pouco? Sinceramente, não sei.
Lembro que de ouvir o
padre dizendo que ele era o cabeça da relação. Lembro de ouvir uma psicóloga
dizendo em um programa de TV que a gente tem que aprender a ceder para fazer um
relacionamento funcionar. E assim o fiz. Aos poucos e constantemente. Parei de treinar
com as amigas da turma do atletismo da escola. Ele não gostava. Atrapalhava o
fim de semana em família. Tudo bem. Família é mais importante mesmo, não é?
O que será que ocorreu
com o pessoal do jornal da faculdade? Diziam que eu escrevia com primor! Contos, crônicas, poemas... Muitas vidas imaginadas em um universo vasto e paralelo que eu construía. Mas ele
não gostava, pois não se via ali ao me ler. Uma vez ele insistiu em saber quem era
aquele cara charmoso do meu conto. Quis saber onde ele morava e não acreditou
quando falei do meu mundo paralelo. Bom... Melhor ceder. Por que escrever se já
temos tantos gênios da literatura? Deixar de escrever era um favor que eu fazia
ao mundo. Era um favor que eu fazia a minha família, não é mesmo? Não é,
gente???
Meu deus, quem estou
querendo enganar? Escrevo sozinha olhando meu rosto de merda refletido na água
da privada. Mas há algo novo nesse rosto para além dos reflexos! Para além de uma vida
de merda. Há um brilho intenso ofuscando o refle...
Ah, MEU DEUS!
Ele está voltando e
gritando: “SE NÂO SAIR DAÍ EM DEZ MINUTOS EU VOU TE MATAR, DESGRAÇADA”.
Tive vontade de rir!
Ganhei dez minutos de felicidade e não posso perder tempo. Levantei do chão e
agora escrevo em pé. Vou conferir no espelho da pia para ver o que há de tão diferente
em mim. São os olhos... Brilham como nunca antes! Meus cabelos cortados ainda estão no
chão e essa, de olhos brilhantes e cabelos raspados é linda e livre! Sou agora
como Sansão às avessas! Ter usado a maquininha de barba dele para raspar meus
cabelos roubou de mim as minhas fraquezas. Apesar de ele quase ter arrancado meu braço antes de eu correr de volta pra cá, me sinto forte. Tenho ainda oito
minutos para aproveitar essa sensação de uma força descomunal. Essa força agora se traduz em palavras. Claro que seria mais cômodo desejar uma força capaz de
quebrar as paredes ao meu redor e colocar o meu amado pra correr.
Eu escrevi amado?
Sim... Acho que ainda o
amo, apesar de ele nunca ter gostado daquilo que sou por baixo da casca de
cabelo, maquiagem e vestidos. Mas ele gostava do que eu parecia ser, e sempre
foi um preço justo para ficar perto de quem se ama...
Por que eu fiz isso?
Por que não consigo me arrepender? Talvez, se eu me arrependesse sinceramente,
ele poderia me perdoar. Mas perdoar de que? Hoje eu acordei cansada do cadáver ambulante
que carrego há anos. Hoje cansei. Quis olhar pro meu antigo rosto de menina-moleque
que costumava adorar esportes de rua e roupas largas. Mas...
O que eu faço agora? Essa
aí do espelho me sorri com um sorriso iluminado. Mas eu, aqui nessa inútil
tradução da vida que não sei se será lida por alguém além de mim, busco
desesperadamente por um sentimento de culpa que me devolva aos braços do meu
amado.
Não me culpo. E essa é
minha maior culpa agora!
Quantos minutos me
resta? Pouco importa! Na pequena janela do banheiro vejo uma sombra tapando os
raios de luz do final da tarde. No vão das sombras busco e encontro frestas de
sol. A linda luz do dia que aos poucos se esvai reflete em alegria no olhar que
vejo de relance no espelho enquanto escrevo.
Parei de escrever nos
últimos 30 segundos! O vidro do banheiro se estraçalhou depois de um estrondo. A
marca do tiro parou no alto da porta. Ele gritou: “ABRE A PORTA AGORA! O PRÓXIMO
EU NÃO ERRO, MALDITA!”
Calculei mentalmente o
tempo que ele levou da janela até a porta. Recomeçou com os pontapés. Está gritando,
mas não vou abrir. Dois tiros. Ficaram na madeira maciça da porta. Quanto eu
preciso correr quando ver a sombra dele na janela? Será que tenho chances de
correr e mergulhar para dentro de meu universo paralelo?
Adeus navalhas! Hoje
meus pulsos ficarão intactos, pois tenho uma corrida a fazer. Adeus bloco de
notas! Vou te enrolar entre os papeis higiênicos e imaginar que, no meio da
merda, algum vira-latas vai encontrar este registro dos meus mais belos momentos
e leva-los pela boca ao mais sensível entre todos os leitores.
A sombra surgiu na
janela!
Basta de palavras!
Hora de correr...
*Este conto tem como plano de fundo a música "Basta", de Tonho Costa, disponível no Spotfy e YouTube.