Estou na
primeira década do século XXI, sou um estudante de cursinho pré-vestibular e
estou deitado no chão do quarto que divido com meu irmão lendo “O Mundo de
Sofia” e pensando seriamente em estudar a graduação em Filosofia. Se bem que Letras
seria legal também. Em meio aos pensamentos perco o foco do que estava lendo e
fecho o livro. “O Romance da História da Filosofia” é o subtítulo. A palavra “romance”
me remete ao curso de Letras. Mas entre a primeira e a última palavra há um
caminho do meio “História”. Seria muito bobo dizer que escolhi minha profissão
através da capa de um livro norueguês infanto-juvenil? Pois foi...
Saí de casa
empolgado, já tentando olhar o mundo com olhos de historiador. Qual é a
construção mais antiga da Vila da Fraternidade? Saio da minha rua, a Santa
Apolônia e subo a Santa Madalena. A minha direita o posto de saúde, que, ouvi
dizer, fora a primeira casa de alvenaria do bairro. A minha esquerda vejo a
Igreja Católica, que embora tenha um prédio mais recente, ainda mantem em pé a
primeira capelinha do bairro, logo na esquina com a Santa Cecília. Perdido em
meus pensamentos sou surpreendido pela menina mais linda do bairro!
— Você é inteligente, né? Deve saber tudo de Química! Eu e
ela (apresenta a amiga) vamos prestar Biologia ano que vem e precisamos de
ajuda para estudar!
Olho para
ela e a amiga e sinto que cada segundo passa como se fosse uma eternidade. Mas
não é uma eternidade que me ajuda a formular as melhores palavras a serem
ditas. Se pudesse falar o que o coração queria, sem qualquer filtro moral,
diria simplesmente “Se você me namora, posso entender até de Física Quântica...”.
Então o medo do ridículo supera a paralisia e digo:
— Nem sou tão inteligente assim. Mas entendo um pouco de
química sim! Se quiserem, podemos marcar um dia para estudarmos.
Elas gritam como um time de voleibol
comemorando um ponto, me agradecem e se afastam. Como pude ser tão dissimulado?
Embora tenha uma facilidade natural para as ciências humanas, Química não me
entra na cabeça! Menti! Descaradamente, menti! Agora eu deveria parar de ler
meu romance tão interessante para estudar uma maldita tabela periódica...
Valia
a pena?
Ah,
se valia... Bastava pensar naquele par de olhos verdes, aquele sorriso largo e
aquela voz profunda e hipnotizante. E dentro da minha consciência uma meta afim
de alcançar a um desejo: “se você me namora, eu me adestro em seu assunto...”. Fui
a biblioteca pública e estudei química por dois dias seguidos. À noite, no cursinho,
esperava mais pela professora de Química do que pelo professor de História. No
terceiro dia, quando achei que já tinha conhecimento para desenrolar pelo menos
uma aula, fui até a rua de cima, a Santa Cecília, onde ela morava. Gritei no
portão e a irmã mais nova dela saiu e falou:
— Asãmnhãunhizuammgusimank
— QUE???
— ASÃMNHÃUNHIZUAMMGUSIMANK!!!
Eu não entendia o que a menininha
falava, e como nenhum adulto apareceu para falar comigo, segui o único gesto
que entendi, quando a menina apontou o dedo para o lado direito. Caminhei pela
Santa Cecília olhando dentro de cada quintal para ver se encontrava a minha pretensa
aluna de Química. Funcionou! Lá estava ela, atrás de um balcão, sentada em uma
mesa com um computador ligado à sua frente.
— Oiiiii!!!
Ela me recebeu com tanto entusiasmo
que não pude conter nenhum dos movimentos possíveis que meu rosto pode dar ao
sorrir. Ela nem me deixou falar e perguntou:
— Como você me achou
aqui?
— A sua irmã me
falou!
Eu não podia dizer que a achei por
pura sorte, já que a irmã dela falava num dialeto indecifrável. Havia muita
coisa a perder se eu, por acaso, crio um mal estar criticando a comunicação da
irmãzinha dela. Então fui direto ao ponto:
— E então, quando
vamos estudar Química?
— Eu bem que
precisava mesmo, mas arrumei esse trabalho de secretária substituta por um mês,
então vai ter que ser depois, tudo bem?
— Claro!!!
Quase não consegui esconder o alívio
por me libertar da urgência em aprender Química! Ela passava horas ali sozinha,
já que a secretária titular estava em férias e, por isso tinha deixado todo o
trabalho mais difícil adiado ou adiantado. Aí passei a acompanha-la em seu
ofício em boa parte do tempo naquele mês. Por fim, ela desistiu de estudar Biologia
e nem prestou o vestibular naquele ano. Eu passei em História e, no ano
seguinte, ela foi estudar no mesmo Centro Universitário que o meu, no curso de Letras.
As idas ao escritório na rua de cima, depois de um mês viraram idas à casa
dela, na mesma rua de cima.
Tudo em minha casa tinha ficado mais
intenso. Os livros que eu lia eram empolgantes. O clima londrinense, o melhor
do mundo naquele outono. O céu tinha um azul profundo e todos os passarinhos,
mesmo a mais trivial das pombas, eram verdes. Quando algum amigo, daqueles que
ficavam horas ali em casa, me chamava no portão, eu nunca podia fingir que não
estava, pois minha mãe dizia que era pecado mentir. Eu precisava escapar de
meus amigos sem mentir. Então notei que a casa aos fundos da minha era a de uma
tia-avó, que morava na rua de cima. Construí uma escada com madeiras velhas e escorei-a
no muro alto dos fundos. Do lado de lá havia um barranco e uma pequena
plantação de bananeiras. Pulei, ajeitei ali alguns tijolos para facilitar uma
eventual volta no escuro e atravessei o quintal da tia idosa até alcançar o
portão que me colocava quase na frente do meu alvo, a casa mais importante! O
lar da Menina da Rua de Cima.
Então, depois de pouco tempo, ela me
namorou, e aquele atalho me foi útil por dois anos. Claro que com o tempo meus
amigos descobriram a tática, e passaram a vir me chamar aqui.
Como?
Eu
disse aqui?
Sim!
Dois
anos depois me mudei para a Rua de Cima. Os quartos que eram dela e da irmã,
agora são dos nossos dois filhos. O quarto que era o de seus pais, agora é o
nosso. Hoje comemoramos o aniversário dela, e as Ruas de Cima da vida me
parecem ser bem mais especiais que o Monte Olimpo, da mitologia grega. As Ruas
de Cima existem, com suas meninas e seus encantos. Com gente gentil e gente
grosseira. E apesar de todos os problemas que existem no mundo real, beber
dessa dose outrora ideal e agora palpável de “Rua de Cima” vale a vida.
*Este conto tem como
plano de fundo a música "Se Você me Namora", de Tonho Costa,
disponível no Spotfy, Apple Music e YouTube.
Que massa Jé!! Parabéns pelo conto!!
ResponderExcluirQue massa Jé!! Parabéns pelo conto!!
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