Espaço destinado ao "Sim"... Ao "devir", ao riso e a entrega total ao tempo... Venha a dor, venha o prazer, venha a vida em sua plenitude... Tudo que é podre e morto, não será bem-vindo. Afastem-se, pois é só para vivos, só para loucos...
Quando ele
surgiu em minha vida, a primeira reação foi de medo das reações. A pouca idade
e o espírito roqueiro/zoeiro me renderam inúmeros tapinhas nas costas com
frases do tipo: “agora tem que levar a vida à sério, hein?”. Outros afirmavam
que tudo mudaria, que não era fácil ser pai, entre outros.
Decidi não me
afetar e agir com naturalidade. Não parei de encarar a vida com bom humor e nem
de ouvir/tocar rock. Luiz Miguel foi bombardeado desde a gestação com muito
Rock...
Como única
criança do rolê, ele ia pra ensaios de banda, UEL (onde eu e sua mãe
estudavamos), ensaios de teatros da Paixão de Cristo, onde muitas vezes era eu
no papel de Cristo. Mas ele gostava mais dos soldados romanos. Sozinho no
quintal, sempre via-o crucificando o Cristo com um capacete de panetone na
cabeça e um chicote improvisado de barbantes. Depois passou a imitar o
Anitelli, do Teatro Mágico.
Nunca precisei
mudar! Ao contrário, ganhei um parceirinho de rock, teatro e vida. Esse combo
de alegrias foi até 2011, quando veio a irmã que já nasceu e encarando uma
cirurgia. No final do ano veio pra ele uma gripe forte que não cedeu em uma
semana. Vômito com sangue corpo ardendo em febre no meu colo, na fila de espera
para o internamento na UTI. A morte do meu filho parecia inevitável. Apesar dos
teatros, nunca pensei que seria capaz um dia de querer, como Jesus, doar a
minha vida por alguém. E ali, naquele terrível corredor de hospital, eu faria
qualquer coisa para assumir a posição moribunda em que ele se encontrava.
Mas não havia
nada a fazer além de confiar no trabalho dos profissionais de saúde que
cuidavam dele. Era a segunda vez em nove meses em que eu estava na situação de
ver um filho na UTI.
A ciência
venceu a morte mais uma vez. Eu não troquei de lugar com ele, mas valeu a pena
confiar na medicina. Claro que aquilo marcou. O LM nunca mais foi o mesmo. Eu
nunca mais fui o mesmo. Apesar dos pesares, resistimos!
É triste ver
hoje, diante da pandemia, tanta gente sofrendo por alguém em uma UTI. Às vezes
até morrendo sem leito disponível. Deixo meu abraço a todos os que tiveram
alguém que perdeu essa batalha. Aos que lutam, resta confiar na ciência.
Há exatamente
uma década eu lia Nietzsche em um leito no hospital. Aguardava o momento de
olhar pela prmeria vez para a minha filha. Ela chegava bem no dia do quinto
aniversário do irmão.
Um erro de
digitação em um documento havia me tirado de forma cruel a possibilidade de dar
aulas como professor substituto. Fazia mestrado na UEL e concorria à uma bolsa
da Capes. Por isso lia Nietzsche. Eu era pai de dois filhos. E desempregado.
Mas o filósofo me dizia "amor fati". E assim seria, pensava...
A menina nasceu
e logo foi possível vê-la na encubadora. Mas ela não sairia de lá naquele dia.
Nasceu com atresia de esofago e foi transferida para o Hospital infantil, onde
deveria fazer uma cirurgia como única chance de sobreviver. Deu certo. Mas
foram duas semanas de UTI. Nesse meio tempo veio a minha bolsa e, graças ao SUS
e seus profissionais, o LM também pôde receber a irmã em casa.
Amor fati!
A morte próxima
de minha filha motivou-me. Aquele outono de 2011 seria o mais intenso de minha
vida. E a curva apontava para cima. Não sei que tipo de energia me tomou, mas o
inverno de 2011 fez eu sentir-me um Zaratustra chegando ao grande meio-dia da
existência. Prosas, futebol, poesia, rock and roll... Era do mestrado para o
doutorado. Dali para a docência e carreira acadêmica.
Mas no dia do
meu aniversário, ao final da primavera, o @lmcabran vomitava sangue. Ardendo em
febre no meu colo, precisou ser transferido do hospital infantil (onde tudo
começou) para uma UTI no Evangélico.
Há dez anos
refaço mentalmente outono, inverno e primavera. Há dez anos tento escapar
àquele ciclo trágico. Dor-prazer-dor...
Li outro dia
que a psicologia chama esse ciclo mental de retorno aos eventos de
"trauma".
"(...)
Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda
uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada
prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e
de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e sequência’ [...]" – Nietzsche, A
Gaia Ciência, §341
Um retorno à
Londrina depois de consulta e exames em Curitiba - 2019
Estou atirada no chão
do banheiro com os dois cotovelos apoiados na fria borda do vaso sanitário. Minhas
mãos seguram o aparelho que brilha diante dos meus olhos com o bloco de notas aberto...
Ele está chutando a porta enquanto eu escrevo sei lá porque...
Estou ilhada aqui
dentro, pois ele desligou o modem de internet e sabe que a operadora bloqueou
meu sinal há meses por falta de créditos. Foi uma escolha difícil. Entre o bloco
de notas e a navalha de barbear dele. Mas cá estou eu sem saber se essa escolha foi a
correta.
Ele parou de gritar e
chutar a porta. O que estará fazendo? Quer saber, não me importo! Não mais. No fundo
até torço para que ele consiga arrebentar essa porta e acabar logo com isso.
Estou intrigada com a
paz que me invadiu agora, justo agora, no momento mais perigoso dessa minha
vidinha insossa. Sei lá... Parece que fui libertada de pesadas correntes que
era obrigada a arrastar por aí. Quando foi que aceitei as obrigações que tive
até agora há pouco? Sinceramente, não sei.
Lembro que de ouvir o
padre dizendo que ele era o cabeça da relação. Lembro de ouvir uma psicóloga
dizendo em um programa de TV que a gente tem que aprender a ceder para fazer um
relacionamento funcionar. E assim o fiz. Aos poucos e constantemente. Parei de treinar
com as amigas da turma do atletismo da escola. Ele não gostava. Atrapalhava o
fim de semana em família. Tudo bem. Família é mais importante mesmo, não é?
O que será que ocorreu
com o pessoal do jornal da faculdade? Diziam que eu escrevia com primor! Contos, crônicas, poemas... Muitas vidas imaginadas em um universo vasto e paralelo que eu construía. Mas ele
não gostava, pois não se via ali ao me ler. Uma vez ele insistiu em saber quem era
aquele cara charmoso do meu conto. Quis saber onde ele morava e não acreditou
quando falei do meu mundo paralelo. Bom... Melhor ceder. Por que escrever se já
temos tantos gênios da literatura? Deixar de escrever era um favor que eu fazia
ao mundo. Era um favor que eu fazia a minha família, não é mesmo? Não é,
gente???
Meu deus, quem estou
querendo enganar? Escrevo sozinha olhando meu rosto de merda refletido na água
da privada. Mas há algo novo nesse rosto para além dos reflexos! Para além de uma vida
de merda. Há um brilho intenso ofuscando o refle...
Ah, MEU DEUS!
Ele está voltando e
gritando: “SE NÂO SAIR DAÍ EM DEZ MINUTOS EU VOU TE MATAR, DESGRAÇADA”.
Tive vontade de rir!
Ganhei dez minutos de felicidade e não posso perder tempo. Levantei do chão e
agora escrevo em pé. Vou conferir no espelho da pia para ver o que há de tão diferente
em mim. São os olhos... Brilham como nunca antes! Meus cabelos cortados ainda estão no
chão e essa, de olhos brilhantes e cabelos raspados é linda e livre! Sou agora
como Sansão às avessas! Ter usado a maquininha de barba dele para raspar meus
cabelos roubou de mim as minhas fraquezas. Apesar de ele quase ter arrancado meu braço antes de eu correr de volta pra cá, me sinto forte. Tenho ainda oito
minutos para aproveitar essa sensação de uma força descomunal. Essa força agora se traduz em palavras. Claro que seria mais cômodo desejar uma força capaz de
quebrar as paredes ao meu redor e colocar o meu amado pra correr.
Eu escrevi amado?
Sim... Acho que ainda o
amo, apesar de ele nunca ter gostado daquilo que sou por baixo da casca de
cabelo, maquiagem e vestidos. Mas ele gostava do que eu parecia ser, e sempre
foi um preço justo para ficar perto de quem se ama...
Por que eu fiz isso?
Por que não consigo me arrepender? Talvez, se eu me arrependesse sinceramente,
ele poderia me perdoar. Mas perdoar de que? Hoje eu acordei cansada do cadáver ambulante
que carrego há anos. Hoje cansei. Quis olhar pro meu antigo rosto de menina-moleque
que costumava adorar esportes de rua e roupas largas. Mas...
O que eu faço agora? Essa
aí do espelho me sorri com um sorriso iluminado. Mas eu, aqui nessa inútil
tradução da vida que não sei se será lida por alguém além de mim, busco
desesperadamente por um sentimento de culpa que me devolva aos braços do meu
amado.
Não me culpo. E essa é
minha maior culpa agora!
Quantos minutos me
resta? Pouco importa! Na pequena janela do banheiro vejo uma sombra tapando os
raios de luz do final da tarde. No vão das sombras busco e encontro frestas de
sol. A linda luz do dia que aos poucos se esvai reflete em alegria no olhar que
vejo de relance no espelho enquanto escrevo.
Parei de escrever nos
últimos 30 segundos! O vidro do banheiro se estraçalhou depois de um estrondo. A
marca do tiro parou no alto da porta. Ele gritou: “ABRE A PORTA AGORA! O PRÓXIMO
EU NÃO ERRO, MALDITA!”
Calculei mentalmente o
tempo que ele levou da janela até a porta. Recomeçou com os pontapés. Está gritando,
mas não vou abrir. Dois tiros. Ficaram na madeira maciça da porta. Quanto eu
preciso correr quando ver a sombra dele na janela? Será que tenho chances de
correr e mergulhar para dentro de meu universo paralelo?
Adeus navalhas! Hoje
meus pulsos ficarão intactos, pois tenho uma corrida a fazer. Adeus bloco de
notas! Vou te enrolar entre os papeis higiênicos e imaginar que, no meio da
merda, algum vira-latas vai encontrar este registro dos meus mais belos momentos
e leva-los pela boca ao mais sensível entre todos os leitores.
A sombra surgiu na
janela!
Basta de palavras!
Hora de correr...
*Este conto tem como plano de fundo a música "Basta", de Tonho Costa, disponível no Spotfy e YouTube.