Certamente você já viu Malena por aí!
E não é que ela goste muito de aparecer, mas, não obstante seu recato, é
impossível que ela passe despercebida. A sua beleza tem um brilho tão intenso,
que, por vezes, quase me esqueço que não estou olhando para a tela de uma
televisão de altíssima qualidade em dia de transmissão do tapete vermelho do
Óscar. É tanta luz emanando daquela
pessoa, que quase me esqueço que ela é uma senhora do lar a caminho da feira
para comprar verduras frescas a serem usadas no almoço.
Não se engane, Malena não cozinha,
embora tenha habilidade neste ofício. Seu marido mantém uma empregada doméstica,
responsável pelos cuidados de sua enorme casa e das refeições da família. Mas
Malena, a gentil Malena, faz questão de escolher pessoalmente os ingredientes
para o almoço. E ela leva muito à sério, quase eleva ao nível de sacralidade a
arte de escolher verduras. É ali que se manifesta todo o esplendor daquela
mulher que, para justificar seu papel no mundo, tem que ser sempre, bela, do
lar e recatada.
Malena acena para os conhecidos na
feira, conversa com o seu Kinjon Humos sobre a qualidade das folhas disponíveis
naquele dia. Para na banca do pastel, onde suas amigas Lourdes e Augusta já
estão lhe esperando para botar a tradicional conversa da feira em dia:
— Menina, você viu o Fernandinho, filho da Katia?
— Que dó, não é? Apareceu todo pintado de tatuagem na igreja
no domingo!
— Se a Katia não botar um limite nesse rapaz, logo ele estará
fumando droga por aí...
Então as três concordam:
— “Deus o livre...”.
Como agradecimento por sua atenção
até aqui, vou lhe poupar dos outros assuntos, tão desinteressantes quanto as
tatuagens do filho da Katia. Espero que não tenhas herdado desta narrativa
antipatia de nenhuma espécie pela minha musa, Malena. Embora essa conversa que
estou omitindo seja, de fato, extremamente maçante, gostaria de colar aqui com
precisão cirúrgica a personagem poética que é Malena em cada um dos seus
movimentos. Apesar de, às vezes, ficar falando mal dos outros, ela preserva
essa luz radiante. E eu, pobre mortal de luz opaca, contentei-me por anos com o
benefício de vislumbrar esta luz. Mas então tornei-me adulto no dia em que ela
virou toda sua luz na minha direção e percebeu-se observada! Sorriu, piscou os
olhos e fez um biquinho como quem me mandasse um beijo. Esfreguei os olhos,
olhei ao redor para ver se não era o marido dela ou outra pessoa perto de mim
quem recebia aqueles gestos sublimes. Não havia ninguém ao meu redor. Mas
quando olhei em sua direção, lá estava ela com a Lourdes e a Augusta colocando
a fofoca em dia.
Foi um delírio. Sim, eu tinha certeza que era um delírio. Enquanto tratava de me acertar com as minhas alucinações, uma voz atrás de mim falou:
Foi um delírio. Sim, eu tinha certeza que era um delírio. Enquanto tratava de me acertar com as minhas alucinações, uma voz atrás de mim falou:
— Tem fogo, Kaderbeck?
Ela sabia meu nome! ELA SABE MEU NOME!!! Não, meu nome não é
“Kaderbeck”. Nem Malena se chama Malena, são nomes fictícios, embora as pessoas
por trás dos nomes, garanto serem reais. Mas preciso proteger Malena. O que vem
a seguir é um segredo que, estou convencido, não pretendo colar na límpida
imagem por traz desta beldade que, aqui, chamo de Malena. Ela então prosseguiu:
— Você fuma, não é? Sempre vejo seu pai fumando aí na frente,
você deve fumar também, não é? E aí, tem fogo?
— Claro!!! Preciso pegar ali em casa.
Eu
morava na rua da feira. E era da calçada ao lado de casa que passei a observar
aquela distinta moradora da rua de cima. Ela “Morava na esquina, ao lado do portão
de entrada do parque da quadra” onde eu jogava bola com meus amigos. Mas eu
gostava mesmo é de observa-la descer a rua para a feira do meu quintal. O seu
Kimjon Humos tinha um acordo com meu pai para estacionar a sua Kombi de
verduras bem ali, em cima da nossa calçada. Naquele dia, as suas caixas de
madeira empilhadas me roubaram toda a visão da feira. Mas agora Malena me pedia
fogo e, sem ser convidada, me seguiu por traz da Kombi e das caixas até a minha
casa. Meus pais trabalhavam, então, peguei o isqueiro do meu pai e, fingindo
que era meu, enfiei seu maço de cigarro paraguaio no bolso.
— Aqui o fogo! Soltou algum fio da roupa, dona Malena?
Precisa cauterizar o tecido?
— Dona Malena, piá? Me poupe! Preciso do seu fogo para me
acender!
Ela pronunciou isso de maneira tão
sensual, que voltei a questionar se estava delirando. A coroa dos meus sonhos
estava ali, na sala de minha casa, sozinha comigo.
— O fogo é pra me acender esse cigarro!
Tirou da bolsa um pedaço de papel
alumínio, de onde desembrulhou um tipo de cigarro bem mais fino que os do meu
pai. Então ela me deu e falou:
— Acende! Dá o primeiro trago!
Nem de cigarro eu gostava. Sempre
fugi da fumaça fedorenta que meu pai produz. Mas não podia negar. Eu suportaria
todo o odor do mundo em homenagem ao brilho daquela mulher. É claro que eu
ascendi o seu estranho cigarro e dei o primeiro trago. Tossi um pouco. Ela riu.
Para a minha enorme surpresa, aquela fumaça não era tão desagradável quanto a
do meu pai! Seria algum tipo de cigarro importado de um lugar muito distante do
Paraguai? Então ela pegou o cigarro e, na cena mais improvável que poderia
imaginar, tragou profundamente, com estilo e habilidade de quem faz isso há
muito tempo. Tive uma vontade incontrolável de rir. O corpo de Malena parecia
agora envolto por uma onda, como uma miragem. Sua camisa social branca com um
laço de fita preto parecia se desabotoar. Ri compulsivamente ao ver a saia
longa marrom de Malena ir ao chão. Diante dos meus olhos um corpo escultural
completamente nu se materializou. Mas, naquela altura, eu já tinha certeza que
era delírio. Até as paredes da sala oscilavam. E eu ria de uma alegria que não
sabia de onde vinha. Estaria ficando doente ou louco? Malena pediu para eu
segurar seu cigarro e puxou minha camiseta. Aproveitei para dar outro trago.
Então ela desabotoou minha calça e eu, já certo de que se tratava de um sonho,
deixei o sonho conduzir-se por si só a partir de então...
Poupo-os agora dos detalhes deste
momento delirante. Só para equilibrar a história, já que eu tinha lhe poupado
de um trecho extremamente chato, agora deixo por conta de vossa imaginação o
ápice desse enredo.
Naquele dia não realizei nenhuma das
tarefas diárias delegadas por meus pais. Quando meu pai chegou, me viu dormindo
nu no sofá com seu isqueiro e maço de cigarros no chão. Enquanto ele tentava em
vão me interrogar e esbravejava por ter visto aquela “visão do capeta”,
palavras dele, eu pensava se minha mente era tão criativa a ponto de ter construído
todo esse cenário sozinha. Conclui que sim, que tinha vivido uma manhã de
loucura, por conta da devoção de toda uma adolescência pela figura de Malena.
Na outra semana reiniciei a
observação da feira a espera de Malena. Ela nem me viu, como sempre.
Encontrou-se com Lourdes e Augusta, como sempre. Despediu-se delas e, quando
parecia se dirigir para sua casa, na rua de cima, virou-se para o meu lado,
caminhou decidida e sensual até parar diante de mim e perguntar:
— E aí? Ainda tem fogo?
*Este conto é uma livre interpretação minha da música
"Malena", de Tonho Costa, disponível no Spotfy, Apple Music e
YouTube.
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