Ouviu dizer que era “dia do beijo” e
sorriu! Pouco importava saber os motivos, a importância ou até mesmo qualquer
crítica sobre o simples fato de terem inventado um dia para celebrar o beijo!
Para ele, a simples menção da palavra “beijo” remetia a um beijo ideal. Mas não
um ideal como o de Platão, inacessível, pertencente a uma instância de mundo
superior. O seu “beijo ideal” tinha se passado aqui mesmo, no mundo dos
sentidos.
Era possível lembrar de cada ato
daquele conjunto de instantes que formou o momento mais feliz de sua vida.
Desde a respiração ofegante, ao encontro dos olhos que se perdiam entre o olhar
a sua frente e seus lábios. Sim, cada movimento daquela cena era sagrado, e ele
se lembrava de todos eles, em todos os seus detalhes...
Tinha lido em algum lugar que o beijo
movimenta 29 músculos! Era incapaz de identificar todos eles na memória, mas isso
importa? Não era apenas o movimento dos músculos da boca que gerava aquela
sensação apoteótica: era tudo! Todo o movimento do beijo que, não fosse por
ela, ainda teria ele lá, preso eternamente naquele instante. Mas ela interrompeu
o toque de lábios pra sorrir. E que sorriso era aquele? Era a imagem exuberante
que o paralisou para não sentir tanto a transição do beijo para a ausência iminente
do mesmo nos próximos instantes.
Ela então segurou forte nas mãos dele,
deu um selinho rápido, daqueles que não deixam oportunidade de prosseguir. Então
ela falou:
—
Adoro essa música! Vamos dançar???
Música? Ele nem lembrava que havia
música. Nem lembrava que havia um mundo para além deles dois. Foi então aos
poucos reconstruindo o mundo ao seu redor. Lembrou-se que a viu passando em
frente à sua casa. Ele estava no quintal recolhendo as folhas caídas das
árvores no final da tarde, e lá estava ela. A menina metida do sobrado da rua
de cima estava com ela. Parou ao me ver e disse:
—
Meu irmão te entregou o convite da festa de hoje à noite, né?
Ele ficou em silêncio, com a pá e
vassoura em uma das mãos e o saco de lixo em outra. Não conseguia olhar pra
metida! Ficou uns bons segundos preso nos olhos da moça que a acompanhava. Percebeu
então que precisava dar uma resposta e começou gaguejando em pleno uso de
vogal:
—
É...É...É...
Percebendo que o motivo do nervosismo
era a estranha ao seu lado, a metida apressou-se em me interromper:
—
Ah, desculpe! Esta é minha prima! Veio de longe pra nos visitar e vai ficar pra
festa! Mas você não...
Era mais que hora de dar uma resposta
rápida. Ele já tinha começado a dar uma desculpa pro irmão dela pra não
comparecer à festa. O povo daquele sobrado tem um salão anexo no andar de cima.
Adoram dar festas em fins de semana com músicas que ativam o seu mau humor instantaneamente.
E como o sobrado é quase colado com o muro dos fundos de sua casa, fica
obrigado a conviver com aquele ruído alto e ruim, ou sair de casa. Mas agora
era o momento de suportar qualquer canção popular universitária para ter a
chance de mergulhar dentro daquele olhar que lhe fora lançado e, ali, dançar a
noite toda com ela, ainda que não soubesse dançar.
—
Opa! Seu irmão me entregou o convite! Eu disse a ele dos trabalhos da
faculdade, que seria difícil de ir, mas... Veja só: já me adiantei! Certamente
estarei lá hoje à noite!
—
Ótimo! Vamos te esperar. Tchau!
A moça forasteira acenou-lhe sem dizer
palavra. Lembrava ainda de ouvir as duas rindo poucos passos à frente. Talvez fosse
da sua reação patética. Talvez da posição maltrapilha, com instrumentos de
limpeza nas mãos. Ou, gostaria de apostar nisso, um riso de gracejo, pois
aquele olhar... Ah... Aquele olhar pareceu que lhe fora lançado com gosto!
Lembrou também da noite, quando começou
a escolher as roupas para se tornar uma novidade. Mas não podia ser muito extravagante,
o que, no caso dele, seria usar um terno, única opção no guarda-roupa além das
calças jeans e camisetas básicas ou de time de futebol. Não, nada de camisa de
time! Decidiu usar a sua calça jeans mais nova e uma camisa polo que ganhou de
sua mãe e ainda não tinha estreado. Fez a barba, ajeitou o cabelo, passou aquele
desodorante de cheiro bom, mas evitou perfume. Ele detestava perfumes. Chegou cedo,
ou melhor, exatamente no horário marcado, quando só haviam os anfitriões e aquela
que seria alvo predileto e premeditado de todos os seus olhares naquela noite. Depois
de cumprimentar aos donos da festa, finalmente pode beijá-la. No rosto, é
claro! Então perguntou:
—
De onde tu vens?
—
Venho de uma terra encantada!
—
Isso explica muita coisa!
—
Explica o que, por exemplo?
—
Explica o fato de o seu olhar e todo o conjunto da obra serem encantadores!
—
Encantou-se comigo, é?
E ela riu com a gargalhada mais bela
que já tinha ouvido! Passaria uma vida ouvindo todas as músicas ruins do mundo só pelo
privilégio de ter ouvido três segundos daquela gargalhada. Em meio ao início do
seu arrebatamento daquele mundo todo, chegou um grupo grande de pessoas. Então a
dona da minha festa particular me pediu licença e foi para perto dos donos
reais da festa, afim de ser apresentada aos outros. Ele sentiu uma ponta de ciúmes
ao vê-la simpática e sorridente para todos! Mas gargalhada como aquela que
ouviu ela não deu a ninguém! Ou deu? Não... Ele teria notado se ela tivesse
repetido o feito para outro privilegiado. Ela parecia mesmo um ser encantado. O
vestido longo, cobrindo os pés, trazia a impressão de que flutuava no ar. Às vezes
pousava ao lado da tia, e posava para fotos... Todos no salão pareciam
encantados com a jovem forasteira. Com exceção de uma ou outra moça ressentida
por não estar no lugar daquela protagonista inesperada, os outros se rendiam a
ela. Quanto mais pessoas chegavam, mais o coração daquela musa parecia navegar
por todo o salão.
Foi neste ponto que nosso herói
compreendeu que seria sorte demais ele, (logo ele...) contar com a atenção
daquele ser encantado. Já tinha se resignado e, sentado em um canto, segurando
sem beber uma taça de vinho espumante, contentava-se apenas olhá-la. Quando a
maioria dos convidados começava a ficar ébria, a moça resolveu voltar para
perto daquele que fora o primeiro convidado recebido. Ele esfregou os olhos
quando a viu se aproximando. Seu coração quase lhe saiu pela boca quando ela
veio pousar com seu vestido voador bem ao seu lado.
—
Sei que não é muito usual, mas... Não temos muito tempo!
Abruptamente ela saltou segurando as mãos
dele. Pareceu eleva-lo acima das estrelas e, sem aviso prévio, começou a
aproximar seu rosto do dele sem dizer palavra. Voltamos então ao início desta
história. Toda essa lembrança da noite, do dia, dos olhares trocados, apontava
para aquele momento mágico do beijo! Qual era mesmo o pedido dela? Ah, sim:
—
Adoro essa música! Vamos dançar???
—
Mas eu não sei dançar!
Disse ele abrindo pela primeira vez os
ouvidos para a música que estava rolando. Surpreendeu-se! Era um Soul de
primeira, com uma pegada de baixo contagiante! Aquela música era a onda
perfeita para embalar aquele momento. E ele começou a balançar devagar,
sentindo a pulsação. Então ela disse:
—
Se você não conseguir dançar comigo, tudo bem, eu danço pra você! Vamos!!! O
tempo está acabando! Vou dançar contigo. Vou dançar pra você!
Ela foi se afastando e balançando as
mãos chamando-o pra dançar... Tudo isso beeeemmmm devagaaaarrrr... Ficou paralisado!
Não sabia quantos demônios seguravam suas pernas. Ele a viu saindo do salão e descendo
as escadas sem virar-se, sem deixar de chama-lo pra dança, como se tivesse
flutuado acima dos degraus, sem medo de cair de costas. Quando finalmente
conseguiu se mover, desceu desesperado as escadas. Ainda teve tempo de ver um
carro saindo devagar da vaga na rua em frente ao sobrado. Os donos da casa
estavam lá, mas ele não teve coragem de perguntar nada. Ainda estava inebriado
pelos acontecimentos anteriores quando ouviu alguém dizer:
— Por isso ela só aceitou beber água? Tinha a intenção pegar a estrada dirigindo
ainda hoje... Que faça boa viagem!
Ela estava sã! Beijou-o sem nem um
vestígio de auxílio do álcool! Mas se ela estava sóbria, totalmente consciente,
por que foi embora assim? Por que disse ter pouco tempo? Por que foi embora
enquanto dizia...
História
baseada em música do compositor londrinense Tonho Costa:
"Lembro de todo o movimento
Do
beijo que ela me deixou.
Eu
só queria uma dança
Dentro
do olhar que ela lançou..."