Espaço destinado ao "Sim"... Ao "devir", ao riso e a entrega total ao tempo... Venha a dor, venha o prazer, venha a vida em sua plenitude... Tudo que é podre e morto, não será bem-vindo. Afastem-se, pois é só para vivos, só para loucos...
Levantei-me
tomado de uma inspiração matinal e pus-me a afrontar a poderosa estrela que
garante toda a vida nesse pedaço de rocha esférica que chamamos de “Terra”:
— O que seria
de ti, imponente estrela, se não fossem aqueles que iluminas? Tens tanto poder
mas não podes nem mesmo nomear-se, pois és mudo! Eu, na minha pequenez,
chamo-lhe Sol e, alimentando-me de sua energia, sou capaz de pensar e de falar!
Mas tu não pensas e não falas. Não tens consciência, criatividade, voz...
Eu passaria o
dia jogando na cara do astro o quando ele perde para mim em razão, mas fui
surpreendido quando uma voz aguda e aquecida invadiu a minha mente. E a estrela
simplesmente repetia-se em uma mesma frase:
— QUEIMEM,
DESGRAÇADOS!
Bom dia, Sol!
* Londrina viveu o dia mais quente já registrado oficialmente. Segundo o Simepar foi registrado 39,5ºC no meio da tarde de ontem, sexta-feira 02/10/2020. Quarta feira tivemos 39,3ºC. O recorde histórico anterior a essa semana havia sido registrado em novembro de 1985, 39,2ºC.
Se você está lendo este conto em uma rede social, talvez não
saiba que ele é parte de uma coletânea inspirada no álbum “As Meninas da Rua de
Cima”, do meu amigo e mestre Tonho Costa. Talvez você tenha em mãos um leitor
de livros digitais, ou uma cópia impressa do livro que este projeto pretende tornar-se
um dia. Nesse segundo caso, este conto estrategicamente está no meio do livro,
e você já entendeu o espírito da coisa. Mas essa metade do caminho é também um
marco inicial de inspiração, por isso narro em primeira pessoa, e não há nenhum
problema em partir daqui!
Estou na
primeira década do século XXI, sou um estudante de cursinho pré-vestibular e
estou deitado no chão do quarto que divido com meu irmão lendo “O Mundo de
Sofia” e pensando seriamente em estudar a graduação em Filosofia. Se bem que Letras
seria legal também. Em meio aos pensamentos perco o foco do que estava lendo e
fecho o livro. “O Romance da História da Filosofia” é o subtítulo. A palavra “romance”
me remete ao curso de Letras. Mas entre a primeira e a última palavra há um
caminho do meio “História”. Seria muito bobo dizer que escolhi minha profissão
através da capa de um livro norueguês infanto-juvenil? Pois foi...
Saí de casa
empolgado, já tentando olhar o mundo com olhos de historiador. Qual é a
construção mais antiga da Vila da Fraternidade? Saio da minha rua, a Santa
Apolônia e subo a Santa Madalena. A minha direita o posto de saúde, que, ouvi
dizer, fora a primeira casa de alvenaria do bairro. A minha esquerda vejo a
Igreja Católica, que embora tenha um prédio mais recente, ainda mantem em pé a
primeira capelinha do bairro, logo na esquina com a Santa Cecília. Perdido em
meus pensamentos sou surpreendido pela menina mais linda do bairro!
— Você é inteligente, né? Deve saber tudo de Química! Eu e
ela (apresenta a amiga) vamos prestar Biologia ano que vem e precisamos de
ajuda para estudar!
Olho para
ela e a amiga e sinto que cada segundo passa como se fosse uma eternidade. Mas
não é uma eternidade que me ajuda a formular as melhores palavras a serem
ditas. Se pudesse falar o que o coração queria, sem qualquer filtro moral,
diria simplesmente “Se você me namora, posso entender até de Física Quântica...”.
Então o medo do ridículo supera a paralisia e digo:
— Nem sou tão inteligente assim. Mas entendo um pouco de
química sim! Se quiserem, podemos marcar um dia para estudarmos.
Elas gritam como um time de voleibol
comemorando um ponto, me agradecem e se afastam. Como pude ser tão dissimulado?
Embora tenha uma facilidade natural para as ciências humanas, Química não me
entra na cabeça! Menti! Descaradamente, menti! Agora eu deveria parar de ler
meu romance tão interessante para estudar uma maldita tabela periódica...
Valia
a pena?
Ah,
se valia... Bastava pensar naquele par de olhos verdes, aquele sorriso largo e
aquela voz profunda e hipnotizante. E dentro da minha consciência uma meta afim
de alcançar a um desejo: “se você me namora, eu me adestro em seu assunto...”. Fui
a biblioteca pública e estudei química por dois dias seguidos. À noite, no cursinho,
esperava mais pela professora de Química do que pelo professor de História. No
terceiro dia, quando achei que já tinha conhecimento para desenrolar pelo menos
uma aula, fui até a rua de cima, a Santa Cecília, onde ela morava. Gritei no
portão e a irmã mais nova dela saiu e falou:
— Asãmnhãunhizuammgusimank
— QUE???
— ASÃMNHÃUNHIZUAMMGUSIMANK!!!
Eu não entendia o que a menininha
falava, e como nenhum adulto apareceu para falar comigo, segui o único gesto
que entendi, quando a menina apontou o dedo para o lado direito. Caminhei pela
Santa Cecília olhando dentro de cada quintal para ver se encontrava a minha pretensa
aluna de Química. Funcionou! Lá estava ela, atrás de um balcão, sentada em uma
mesa com um computador ligado à sua frente.
— Oiiiii!!!
Ela me recebeu com tanto entusiasmo
que não pude conter nenhum dos movimentos possíveis que meu rosto pode dar ao
sorrir. Ela nem me deixou falar e perguntou:
— Como você me achou
aqui?
— A sua irmã me
falou!
Eu não podia dizer que a achei por
pura sorte, já que a irmã dela falava num dialeto indecifrável. Havia muita
coisa a perder se eu, por acaso, crio um mal estar criticando a comunicação da
irmãzinha dela. Então fui direto ao ponto:
— E então, quando
vamos estudar Química?
— Eu bem que
precisava mesmo, mas arrumei esse trabalho de secretária substituta por um mês,
então vai ter que ser depois, tudo bem?
— Claro!!!
Quase não consegui esconder o alívio
por me libertar da urgência em aprender Química! Ela passava horas ali sozinha,
já que a secretária titular estava em férias e, por isso tinha deixado todo o
trabalho mais difícil adiado ou adiantado. Aí passei a acompanha-la em seu
ofício em boa parte do tempo naquele mês. Por fim, ela desistiu de estudar Biologia
e nem prestou o vestibular naquele ano. Eu passei em História e, no ano
seguinte, ela foi estudar no mesmo Centro Universitário que o meu, no curso de Letras.
As idas ao escritório na rua de cima, depois de um mês viraram idas à casa
dela, na mesma rua de cima.
Tudo em minha casa tinha ficado mais
intenso. Os livros que eu lia eram empolgantes. O clima londrinense, o melhor
do mundo naquele outono. O céu tinha um azul profundo e todos os passarinhos,
mesmo a mais trivial das pombas, eram verdes. Quando algum amigo, daqueles que
ficavam horas ali em casa, me chamava no portão, eu nunca podia fingir que não
estava, pois minha mãe dizia que era pecado mentir. Eu precisava escapar de
meus amigos sem mentir. Então notei que a casa aos fundos da minha era a de uma
tia-avó, que morava na rua de cima. Construí uma escada com madeiras velhas e escorei-a
no muro alto dos fundos. Do lado de lá havia um barranco e uma pequena
plantação de bananeiras. Pulei, ajeitei ali alguns tijolos para facilitar uma
eventual volta no escuro e atravessei o quintal da tia idosa até alcançar o
portão que me colocava quase na frente do meu alvo, a casa mais importante! O
lar da Menina da Rua de Cima.
Então, depois de pouco tempo, ela me
namorou, e aquele atalho me foi útil por dois anos. Claro que com o tempo meus
amigos descobriram a tática, e passaram a vir me chamar aqui.
Como?
Eu
disse aqui?
Sim!
Dois
anos depois me mudei para a Rua de Cima. Os quartos que eram dela e da irmã,
agora são dos nossos dois filhos. O quarto que era o de seus pais, agora é o
nosso. Hoje comemoramos o aniversário dela, e as Ruas de Cima da vida me
parecem ser bem mais especiais que o Monte Olimpo, da mitologia grega. As Ruas
de Cima existem, com suas meninas e seus encantos. Com gente gentil e gente
grosseira. E apesar de todos os problemas que existem no mundo real, beber
dessa dose outrora ideal e agora palpável de “Rua de Cima” vale a vida.
*Este conto tem como
plano de fundo a música "Se Você me Namora", de Tonho Costa,
disponível no Spotfy, Apple Music e YouTube.
Certamente você já viu Malena por aí!
E não é que ela goste muito de aparecer, mas, não obstante seu recato, é
impossível que ela passe despercebida. A sua beleza tem um brilho tão intenso,
que, por vezes, quase me esqueço que não estou olhando para a tela de uma
televisão de altíssima qualidade em dia de transmissão do tapete vermelho do
Óscar.É tanta luz emanando daquela
pessoa, que quase me esqueço que ela é uma senhora do lar a caminho da feira
para comprar verduras frescas a serem usadas no almoço.
Não se engane, Malena não cozinha,
embora tenha habilidade neste ofício. Seu marido mantém uma empregada doméstica,
responsável pelos cuidados de sua enorme casa e das refeições da família. Mas
Malena, a gentil Malena, faz questão de escolher pessoalmente os ingredientes
para o almoço. E ela leva muito à sério, quase eleva ao nível de sacralidade a
arte de escolher verduras. É ali que se manifesta todo o esplendor daquela
mulher que, para justificar seu papel no mundo, tem que ser sempre, bela, do
lar e recatada.
Malena acena para os conhecidos na
feira, conversa com o seu Kinjon Humos sobre a qualidade das folhas disponíveis
naquele dia. Para na banca do pastel, onde suas amigas Lourdes e Augusta já
estão lhe esperando para botar a tradicional conversa da feira em dia:
— Menina, você viu o Fernandinho, filho da Katia?
— Que dó, não é? Apareceu todo pintado de tatuagem na igreja
no domingo!
— Se a Katia não botar um limite nesse rapaz, logo ele estará
fumando droga por aí...
Então as três concordam:
— “Deus o livre...”.
Como agradecimento por sua atenção
até aqui, vou lhe poupar dos outros assuntos, tão desinteressantes quanto as
tatuagens do filho da Katia. Espero que não tenhas herdado desta narrativa
antipatia de nenhuma espécie pela minha musa, Malena. Embora essa conversa que
estou omitindo seja, de fato, extremamente maçante, gostaria de colar aqui com
precisão cirúrgica a personagem poética que é Malena em cada um dos seus
movimentos. Apesar de, às vezes, ficar falando mal dos outros, ela preserva
essa luz radiante. E eu, pobre mortal de luz opaca, contentei-me por anos com o
benefício de vislumbrar esta luz. Mas então tornei-me adulto no dia em que ela
virou toda sua luz na minha direção e percebeu-se observada! Sorriu, piscou os
olhos e fez um biquinho como quem me mandasse um beijo. Esfreguei os olhos,
olhei ao redor para ver se não era o marido dela ou outra pessoa perto de mim
quem recebia aqueles gestos sublimes. Não havia ninguém ao meu redor. Mas
quando olhei em sua direção, lá estava ela com a Lourdes e a Augusta colocando
a fofoca em dia. Foi um delírio. Sim, eu tinha certeza que era um delírio.
Enquanto tratava de me acertar com as minhas alucinações, uma voz atrás de mim
falou:
— Tem fogo, Kaderbeck?
Ela sabia meu nome! ELA SABE MEU NOME!!! Não, meu nome não é
“Kaderbeck”. Nem Malena se chama Malena, são nomes fictícios, embora as pessoas
por trás dos nomes, garanto serem reais. Mas preciso proteger Malena. O que vem
a seguir é um segredo que, estou convencido, não pretendo colar na límpida
imagem por traz desta beldade que, aqui, chamo de Malena. Ela então prosseguiu:
— Você fuma, não é? Sempre vejo seu pai fumando aí na frente,
você deve fumar também, não é? E aí, tem fogo?
— Claro!!! Preciso pegar ali em casa.
Eu
morava na rua da feira. E era da calçada ao lado de casa que passei a observar
aquela distinta moradora da rua de cima. Ela “Morava na esquina, ao lado do portão
de entrada do parque da quadra” onde eu jogava bola com meus amigos. Mas eu
gostava mesmo é de observa-la descer a rua para a feira do meu quintal. O seu
Kimjon Humos tinha um acordo com meu pai para estacionar a sua Kombi de
verduras bem ali, em cima da nossa calçada. Naquele dia, as suas caixas de
madeira empilhadas me roubaram toda a visão da feira. Mas agora Malena me pedia
fogo e, sem ser convidada, me seguiu por traz da Kombi e das caixas até a minha
casa. Meus pais trabalhavam, então, peguei o isqueiro do meu pai e, fingindo
que era meu, enfiei seu maço de cigarro paraguaio no bolso.
— Aqui o fogo! Soltou algum fio da roupa, dona Malena?
Precisa cauterizar o tecido?
— Dona Malena, piá? Me poupe! Preciso do seu fogo para me
acender!
Ela pronunciou isso de maneira tão
sensual, que voltei a questionar se estava delirando. A coroa dos meus sonhos
estava ali, na sala de minha casa, sozinha comigo.
— O fogo é pra me acender esse cigarro!
Tirou da bolsa um pedaço de papel
alumínio, de onde desembrulhou um tipo de cigarro bem mais fino que os do meu
pai. Então ela me deu e falou:
— Acende! Dá o primeiro trago!
Nem de cigarro eu gostava. Sempre
fugi da fumaça fedorenta que meu pai produz. Mas não podia negar. Eu suportaria
todo o odor do mundo em homenagem ao brilho daquela mulher. É claro que eu
ascendi o seu estranho cigarro e dei o primeiro trago. Tossi um pouco. Ela riu.
Para a minha enorme surpresa, aquela fumaça não era tão desagradável quanto a
do meu pai! Seria algum tipo de cigarro importado de um lugar muito distante do
Paraguai? Então ela pegou o cigarro e, na cena mais improvável que poderia
imaginar, tragou profundamente, com estilo e habilidade de quem faz isso há
muito tempo. Tive uma vontade incontrolável de rir. O corpo de Malena parecia
agora envolto por uma onda, como uma miragem. Sua camisa social branca com um
laço de fita preto parecia se desabotoar. Ri compulsivamente ao ver a saia
longa marrom de Malena ir ao chão. Diante dos meus olhos um corpo escultural
completamente nu se materializou. Mas, naquela altura, eu já tinha certeza que
era delírio. Até as paredes da sala oscilavam. E eu ria de uma alegria que não
sabia de onde vinha. Estaria ficando doente ou louco? Malena pediu para eu
segurar seu cigarro e puxou minha camiseta. Aproveitei para dar outro trago.
Então ela desabotoou minha calça e eu, já certo de que se tratava de um sonho,
deixei o sonho conduzir-se por si só a partir de então...
Poupo-os agora dos detalhes deste
momento delirante. Só para equilibrar a história, já que eu tinha lhe poupado
de um trecho extremamente chato, agora deixo por conta de vossa imaginação o
ápice desse enredo.
Naquele dia não realizei nenhuma das
tarefas diárias delegadas por meus pais. Quando meu pai chegou, me viu dormindo
nu no sofá com seu isqueiro e maço de cigarros no chão. Enquanto ele tentava em
vão me interrogar e esbravejava por ter visto aquela “visão do capeta”,
palavras dele, eu pensava se minha mente era tão criativa a ponto de ter construído
todo esse cenário sozinha. Conclui que sim, que tinha vivido uma manhã de
loucura, por conta da devoção de toda uma adolescência pela figura de Malena.
Na outra semana reiniciei a
observação da feira a espera de Malena. Ela nem me viu, como sempre.
Encontrou-se com Lourdes e Augusta, como sempre. Despediu-se delas e, quando
parecia se dirigir para sua casa, na rua de cima, virou-se para o meu lado,
caminhou decidida e sensual até parar diante de mim e perguntar:
— E aí? Ainda tem fogo?
*Este conto é uma livre interpretação minha da música
"Malena", de Tonho Costa, disponível no Spotfy, Apple Music e
YouTube.