Na madrugada do dia
em que completaria 30 anos, sonhei que eu ia embora de casa.
Uma troca de roupa, um pouco de dinheiro, lanche... Tudo dentro de sacolas plásticas antes de entrar
na mochila. As sacolinhas impediriam a destruição do pequeno kit em meio à
pesada chuva que caia.
Peguei minha
bicicleta e mergulhei na fria chuva às 6 da manhã em direção à qualquer
lugar... Saí sem dizer palavra a ninguém. Guardar segredos sempre foi meu
forte, até que, dividir segredos para além de mim, não me trouxe boas experiências. No sonho
eu voltava a ter um segredo só comigo mesmo!
A cabeça estava
confusa e não sabia por que pedalava, nem pra onde iria, nem o que pretendia
com a estranha fuga de casa. Talvez eu só quisesse seguir o conselho de Mário
Quintana quando fala da verdadeira arte de viajar:
“A gente sempre deve
sair à rua como quem foge de casa,
Como se estivessem
abertos diante de nós todos os caminhos do mundo...”
Naquela viagem
onírica, a subida em direção à saída dos limites da cidade, traçava o caminho
que me levaria, tal qual criança pequena e amedrontada, aos braços de meu pai...
As lágrimas nos olhos se misturavam às incessantes águas da chuva que me davam
a impressão de estar molhado até os ossos... Antes de sair definitivamente de
cidade, andei quase 500 metros em busca de um atalho, mas desisti e voltei à
estrada principal... Quase um quilômetro a mais de pedalada! Não tinha importância,
pois a principal viagem era através de mim mesmo.
A tristeza
amargurante, que nem o [aero] porto mais alegre conseguiu despistar, poderia
talvez ficar ali naquela estrada... A cada metro pedalado, debaixo daquela
chuva, lágrimas e sorrisos se alternavam num percurso trágico em busca de [re]construir
a mim mesmo...
Num portal turístico
que nada tem de especial além da cobertura, me escondi da chuva por uns minutos
e comi uma banana...
O que fazer?
Eu poderia voltar e
fingir que nada tinha acontecido, ou podia seguir...
Segui.
Mas seguir pra onde?
A chuva só aumentava
e eu pouco enxergava... Raios e trovões em meio à colinas me davam um cenário
totalmente rústico e desprotegido, sem para-raios, entregue a todos os riscos do tempo e
da estrada...
Um caminhão urrou tal qual um dinossauro atrás de mim... Olhar pra traz seria
perda de tempo em meio a tanta água que caia. Só senti quando fui arrastado,
paralisando todos os meus nervos...
Passado tudo, pude
olhar para o chão e ver o corpo em pedaços na pista...
Visão terrível...
Depois de quase ser levado pelo vento da carreta que descia em alta velocidade, ver aquele tatu em pedaços não foi a melhor das imagens pra se somar ao meu susto...
O mau tempo
persistia, mas às vezes a chuva dava pequenas tréguas...
Pensava em me livrar
de todas as recordações ruins pedalando até não suportar mais a dor e o
cansaço... Ora, não disse no último poema que o fim do mundo é quando acaba a
dor? A melhor maneira de acabar com a dor é leva-la ao seu limite máximo!
Mas pôr fim à dor, seria uma adesão aos caminhos decadentes do niilismo...
Não!
Poderia chegar perto
do limite físico e, ao atravessar a divisa para o outro estado, descansar na
primeira cidade, pra continuar no outro dia o caminho que levava ao abraço de
meu pai no final da estrada...
Às dez da manhã
completei quarenta e um quilômetros de pedalada. Exatamente metade do percurso
que ia até a primeira cidade após a divisa da ponte sobre rio.
De repente, esqueci
que era um filho carente e assustado. Me lembrei que era pai também. A vontade
de dar um abraço no meu pai se converteu em vontade de abraçar meu filho, que,
exatamente um ano antes, perdia aos poucos sua frágil vida no meu colo em uma
fila de hospital.
Meu filho está vivo!
Os médicos o levaram
à UTI naquele dia 17 de dezembro passado, e, logo depois do natal, ele voltou pra casa...
Eu precisava vê-lo! Me certificar de que, neste ano, ele não sofreria tanto
quanto o ano anterior.
Voltei sem pressa.
Substituí as
pedaladas por caminhadas empurrando a bicicleta em longas ladeiras...
Ao meio-dia, perto
do portal turístico que me devolveria aos limites de minha cidade, parei pra
comer todo o lanche da mochila...
A volta foi pesada!
Se eu completasse os 82 (quase 83 com o desvio) quilômetros, teria completado
também a viagem até o outro estado, caso tivesse seguido em frente... Uma imagem
interessante... Se chegasse em casa, bateria meu recorde de distancia
percorrida em um só dia , sem uso de combustíveis inflamáveis.
Às longas caminhadas
rendiam aos poucos dores na região do incessante encontro entre as duas pernas
quando se movem. O céu, vez por outra, apresentava seu infinito azul entre as
nuvens de chuva que, aos poucos, ficavam cada vez menos densas. Embora ainda houvessem nuvens,
o mormaço ia queimando a pele desprotegida a medida que a tarde ia avançando...
A cada passo a dor... No fim de tudo o amor...
Aquela dolorosa e
pesada caminhada, carregando meu veículo, valia a pena, afinal, “Somente os
pensamentos que temos caminhando valem alguma coisa...” (Nietzsche).
Chegar, antes de
garantir o abraço ao meu filho, que era o que eu mais queria, me demandaria
explicações de coisas, sentimentos que eu nunca soube explicar... Eu
simplesmente não sei...
Não consigo separar
em minha mente sonho e realidade. Acho que, no fim das contas, tento transpor todos
os meus sonhos pra realidade, pra ver se no meu mundo a realidade possa ficar mais palpável. Mas quem
poderia entender isso?
Há tempos que perdi
a paciência com a razão, a moderação, o comprometimento... Há tempos que não
entendo como as pessoas conseguem programar seus sentimentos e explica-los um a
um dentro de limitados padrões de comportamento. Acho que, no fundo, as pessoas não sentem mais
nada...
talvez seja eu o único a ter
enlouquecido mesmo...
Talvez ainda me
falte a lucidez necessária pra retirar todos os átomos de alegria possíveis desta
loucura e chutar pra longe a tristeza...
Mas tudo foi apenas
um sonho...
Eu que nasci em 82,
quase 83, se tivesse pedalado 82, quase 83 quilômetros num só dia, deixaria
marcas de sol no meu rosto. Algum, entre meus amigos que vieram me cumprimentar
pelo meu aniversário, certamente teria notado. Tivesse eu cometido a loucura de
pedalar mais de 80 quilômetros sem qualquer plano, aviso e preparo físico,
teria dado pouca atenção aos meus amigos e teria ido dormir com meu filho na
hora que eles estivessem ainda aqui em casa...
Que bom que foi só
um sonho... Tivesse eu feito esta viagem onírica, estaria sentindo até hoje valiosas dores no meu joelho esquerdo...