sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Sonho – Fuga e Estrada

Na madrugada do dia em que completaria 30 anos, sonhei que eu ia embora de casa.
Uma troca de roupa, um pouco de dinheiro, lanche... Tudo dentro de sacolas plásticas antes de entrar na mochila. As sacolinhas impediriam a destruição do pequeno kit em meio à pesada chuva que caia.
Peguei minha bicicleta e mergulhei na fria chuva às 6 da manhã em direção à qualquer lugar... Saí sem dizer palavra a ninguém. Guardar segredos sempre foi meu forte, até que, dividir segredos para além de mim, não me trouxe boas experiências. No sonho eu voltava a ter um segredo só comigo mesmo!
A cabeça estava confusa e não sabia por que pedalava, nem pra onde iria, nem o que pretendia com a estranha fuga de casa. Talvez eu só quisesse seguir o conselho de Mário Quintana quando fala da verdadeira arte de viajar:

“A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,
Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo...”

Naquela viagem onírica, a subida em direção à saída dos limites da cidade, traçava o caminho que me levaria, tal qual criança pequena e amedrontada, aos braços de meu pai... As lágrimas nos olhos se misturavam às incessantes águas da chuva que me davam a impressão de estar molhado até os ossos... Antes de sair definitivamente de cidade, andei quase 500 metros em busca de um atalho, mas desisti e voltei à estrada principal... Quase um quilômetro a mais de pedalada! Não tinha importância, pois a principal viagem era através de mim mesmo.
A tristeza amargurante, que nem o [aero] porto mais alegre conseguiu despistar, poderia talvez ficar ali naquela estrada... A cada metro pedalado, debaixo daquela chuva, lágrimas e sorrisos se alternavam num percurso trágico em busca de [re]construir a mim mesmo...
Num portal turístico que nada tem de especial além da cobertura, me escondi da chuva por uns minutos e comi uma banana...
O que fazer?
Eu poderia voltar e fingir que nada tinha acontecido, ou podia seguir...
Segui.
Mas seguir pra onde?
A chuva só aumentava e eu pouco enxergava... Raios e trovões em meio à colinas me davam um cenário totalmente rústico e desprotegido, sem para-raios, entregue a todos os riscos do tempo e da estrada...
Um caminhão urrou tal qual um dinossauro atrás de mim... Olhar pra traz seria perda de tempo em meio a tanta água que caia. Só senti quando fui arrastado, paralisando todos os meus nervos...
Passado tudo, pude olhar para o chão e ver o corpo em pedaços na pista...
Visão terrível...
Depois de  quase ser levado pelo vento da carreta que descia em alta velocidade, ver aquele tatu em pedaços não foi a melhor das imagens pra se somar ao meu susto...
O mau tempo persistia, mas às vezes a chuva dava pequenas tréguas...
Pensava em me livrar de todas as recordações ruins pedalando até não suportar mais a dor e o cansaço... Ora, não disse no último poema que o fim do mundo é quando acaba a dor? A melhor maneira de acabar com a dor é leva-la ao seu limite máximo!
Mas pôr fim à dor, seria uma adesão aos caminhos decadentes do niilismo...
Não!
Poderia chegar perto do limite físico e, ao atravessar a divisa para o outro estado, descansar na primeira cidade, pra continuar no outro dia o caminho que levava ao abraço de meu pai no final da estrada...
Às dez da manhã completei quarenta e um quilômetros de pedalada. Exatamente metade do percurso que ia até a primeira cidade após a divisa da ponte sobre rio.

De repente, esqueci que era um filho carente e assustado. Me lembrei que era pai também. A vontade de dar um abraço no meu pai se converteu em vontade de abraçar meu filho, que, exatamente um ano antes, perdia aos poucos sua frágil vida no meu colo em uma fila de hospital.
Meu filho está vivo!
Os médicos o levaram à UTI naquele dia 17 de dezembro passado, e, logo depois do natal, ele voltou pra casa...
Eu precisava vê-lo! Me certificar de que, neste ano, ele não sofreria tanto quanto o ano anterior.
Voltei sem pressa.
Substituí as pedaladas por caminhadas empurrando a bicicleta em longas ladeiras...
Ao meio-dia, perto do portal turístico que me devolveria aos limites de minha cidade, parei pra comer todo o lanche da mochila...
A volta foi pesada! Se eu completasse os 82 (quase 83 com o desvio) quilômetros, teria completado também a viagem até o outro estado, caso tivesse seguido em frente... Uma imagem interessante... Se chegasse em casa, bateria meu recorde de distancia percorrida em um só dia , sem uso de combustíveis inflamáveis.
Às longas caminhadas rendiam aos poucos dores na região do incessante encontro entre as duas pernas quando se movem. O céu, vez por outra, apresentava seu infinito azul entre as nuvens de chuva que, aos poucos, ficavam cada vez menos densas. Embora ainda houvessem nuvens, o mormaço ia queimando a pele desprotegida a medida que a tarde ia avançando... A cada passo a dor... No fim de tudo o amor...
Aquela dolorosa e pesada caminhada, carregando meu veículo, valia a pena, afinal, “Somente os pensamentos que temos caminhando valem alguma coisa...” (Nietzsche).
Chegar, antes de garantir o abraço ao meu filho, que era o que eu mais queria, me demandaria explicações de coisas, sentimentos que eu nunca soube explicar... Eu simplesmente não sei...
Não consigo separar em minha mente sonho e realidade. Acho que, no fim das contas, tento transpor todos os meus sonhos pra realidade, pra ver se no meu  mundo a realidade possa ficar mais palpável. Mas quem poderia entender isso?
Há tempos que perdi a paciência com a razão, a moderação, o comprometimento... Há tempos que não entendo como as pessoas conseguem programar seus sentimentos e explica-los um a um dentro de limitados padrões de comportamento. Acho que, no fundo, as pessoas não sentem mais nada... 
talvez seja eu o único a ter enlouquecido mesmo...
Talvez ainda me falte a lucidez necessária pra retirar todos os átomos de alegria possíveis desta loucura e chutar pra longe a tristeza...
Mas tudo foi apenas um sonho...
Eu que nasci em 82, quase 83, se tivesse pedalado 82, quase 83 quilômetros num só dia, deixaria marcas de sol no meu rosto. Algum, entre meus amigos que vieram me cumprimentar pelo meu aniversário, certamente teria notado. Tivesse eu cometido a loucura de pedalar mais de 80 quilômetros sem qualquer plano, aviso e preparo físico, teria dado pouca atenção aos meus amigos e teria ido dormir com meu filho na hora que eles estivessem ainda aqui em casa...
Que bom que foi só um sonho... Tivesse eu feito esta viagem onírica, estaria sentindo até hoje valiosas dores no meu joelho esquerdo...


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